sexta-feira, 16 de abril de 2004

Eva ou Maria?

Em nossa cultura ocidental, dois grandes mitos do feminino formam o imaginário popular a respeito do ser mulher: Eva e Maria.
Eva, a primeira mulher, a mulher que figura o pecado. O pecado original. Aquela que perturba o homem, que o lança no mal caminho. A imagem do sexo. A imagem do proibido. Do fruto proibido. Aquela que nasceu do homem (nasceu da costela de Adão) e por falta de gratidão e bondade, tira-o do paraíso celeste, lançando-o ao inferno terrestre. Lançando ao inferno do desejo, desejo pelo proibido. Ao inferno do desejo e de sua insatisfação. É Eva a imagem da mulher que tira o homem de sua razão, que o desconcerta. É a imagem da paixão que cega, que enlouquece, que instiga ao crime.
Mas se Eva peca pela desobediência e pela ingratidão, Maria, ao contrário, é imagem da pureza, da candura, da resignação, da subserviência.
Maria é imagem da mãe. Da mãe assexuada, virgem, que tem em seu ventre um filho, sem ter sofrido o pecado do sexo. Maria, a imagem da santidade, da bondade, do altruísmo. Maria não tem desejo, nem inspira o desejo. Coloca seu único filho no mundo para salvar a humanidade do mal cometido pela primeira e pecaminosa mulher.
Mas o fato é que nos mulheres não somos mitos, não temos, sozinhas, o poder para destruir ou salvar toda uma humanidade. Não somos A mulher, somos apenas mulheres. Nem Eva, nem Maria, apenas mulheres.

Os sentimentos da modernidade

Quem não se lembra da época em que apenas o olhar paterno bastava para que o filho soubesse o que deveria ou não deveria ser feito? Quem não se lembra da época em que a profissão ou até mesmo o casamento era escolhido pelos progenitores? Quem não se lembra da época em que o que era certo e errado estava bastante claro para todos e, inclusive, era consenso. Porém, esta é, sem dúvidas, uma época em decadência. A cada dia percebemos a diluição deste poder, e em conseqüência, o que é certo e errado passa a ser colocado em questão.
Podemos perceber concretamente que as figuras representativas do poder estão sendo diluídas: as relações familiares se modificam, sendo que a figura central deixa de ser o pai e passa a ser a relação familiar em si mesmo; os professores perdem o lugar da mestria, isto é, o lugar de quem sabe, e passa a ser um agente proporcionador do encontro do aluno com um aprendizado específico; o próprio Direito está diluindo seu poder na medida em que propicia sua privatização, a lei deixa de ser regida por uma única instância, o Estado, representada pela emblemática figura de um juiz, para ser aplicada por instâncias outras, como institutos de mediação e arbitragem, nos quais não há uma autoridade decisória, mas há uma condução para a resolução de um determinado conflito. É a época da comunicação e da discussão, e é através destas que o poder se dilui.
E a medida em que o poder se dilui, as certezas a respeito do ser e a respeito da vida entram em decadência. Antes, havia alguém (pai, professor, juiz, etc.) que supostamente sabia o que era certo e errado, e através do seu poder se constituía a idéia de verdade. Hoje não conferimos mais ao outro a verdade sobre nossas vidas, temos que decidi-la sozinhos. E descobrir nossa verdade neste mundo de muitas possibilidades, faz-nos, muitas vezes, sentir angústia e até solidão.
“Eu não sei, a cada dia, o que vou amar no dia seguinte”, diz Saint-Preux, o protagonista da novela A nova Heloísa, de Rousseau.
Este é um sentimento próprio de nossa modernidade, época que se caracteriza por propiciar ao homem uma vasta gama de possibilidades. Vivemos um momento no qual tudo é possível, nada é absurdo, tudo deve ser considerado.
O homem moderno das múltiplas possibilidades sofre por ter que se confrontar com o seu desejo e por se ver responsavelmente implicado nas suas escolhas. Sofre com o desamparo frente a contingência da vida moderna, já que perdeu, com a queda da moralidade ortodoxa, uma certa referência do que deve ser ou do que deve fazer, do certo e errado, e passa a ser o responsável pela formulação destas questões, restando, enfim, a incerteza, a solidão e por conseqüência, a famosa doença do século que se foi: a depressão.
Isto tudo caracteriza uma forte mudança na história da condição humana. e resta-nos perguntarmos: o que é melhor, sofrer com a angústia de ter que encontrar nosso próprio desejo, ou sofrer com a angústia de ter nosso próprio desejo esmagado pelo desejo de um outro?

domingo, 4 de abril de 2004

Casar ou não casar: eis a questão!

Até algum tempo atrás, a questão exposta no título deste artigo não era pertinente, visto que havia a crença de que todos nós, seres humanos, nascemos e crescemos para nos unirmos a alguém e vivermos uma relação consolidada pelos laços do matrimônio. E ainda mais: esta união havia de ser respaldada pelas duas maiores instâncias da Lei em nossa cultura: a Igreja e o Estado.
Então, com a certeza inabalável de estar dando um passo a frente em seu desenvolvimento pessoal, de estar cumprindo “as ordens da natureza humana”, homens e mulheres casavam-se no religioso e no civil.
Porém, nossa modernidade é marcada, sobretudo, por um grande abalo nas certezas, nas convicções. Vivemos em um momento da história em que tudo se questiona. Também vivemos a era das sensações, dos pequenos prazeres, na qual os sentimento são efêmeros, evanescentes.
Nesta era dos questionamentos e da efemeridade, repensa-se as relações interpessoais, dentre elas, o casamento.
O casamento como vínculo contratual deixou de ser obrigatoriedade, mesmo que moral, e cada vez mais o número de vínculos destes modos de vida tem-se dispensado e até mesmo desfeito.
Mas porque nosso comportamento em relação a esta temática tem se transformado tão duramente? Em geral, a crítica que se faz a instituição casamento refere-se, sobretudo, a subjugação a que, na maior parte das vezes, se impõe os envolvidos em tal relação. No casamento é como se desaparecessem os sujeitos para nascer um terceiro elemento: a relação.
E como vivemos numa época na qual se considera largamente a subjetividade, a individualidade e os interesses de cada um, cada vez menos cedemos aos interesses dos outros em detrimento dos nossos, e já nos diziam os antigos: casamento é doação... Logo, dizemos cada vez menos sim ao casamento. Só que ainda não sabemos direito o que fazer com estas incertezas a respeito desta temática. Devemos entender que este novo tipo de comportamento é fruto de nosso momento histórico, é próprio da modernidade. Como diz Jurandir Freire Costa, hoje em dia “queremos um amor imortal, mas com data de validade marcada”, ainda não abandamos nosso ideal de felicidade que está ligado a um relacionamento amoroso, mas ao mesmo tempo, questionamo-nos sobre ele. Assim, a pergunta sobre casar-se ou casar-se assola-nos constantemente a cabeça.
Devemos nos perguntar: é ruim isto que está nos acontecendo? É ruim estar privilegiando tanto o sujeito em detrimento destas relações historicamente criticadas? Na verdade não. Pelo contrário. Não há nada de ruim quando conseguimos nos relacionar com alguém sem desconsiderarmos nossos próprios desejos e interesses, bem como os desejos e interesses daquele com quem nos relacionamos.
Porém, temos que tomar o cuidado para não assumirmos uma moral inversa, isto é, não dizermos não aos vínculos só pelas críticas que se fazem a eles. Devemos, sim, sempre repensarmos a forma de vida que levamos, sobretudo para encontrarmos nosso próprio desejo.