segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

do Nome-do-Pai a uma père-version

“Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar.
Viajaram para o Sul.
Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.
Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.
E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:
– Me ajuda a olhar!”[1]

Sabemos que o neurótico é aquele que precisa inventar o pai para dar conta de um gozo no corpo, para dar conta deste gozo que aparece como excessivo, imenso. Ante o irrepresentável que emudece, o neurótico é aquele que inventa um Nome. Pede ao pai um Nome. Pede ao pai que dê sentido, significação, àquilo que aparece como fora do campo das significações.
O que justamente acontece com o neurótico é que ele pode acreditar neste Nome dado que supostamente esconde isto que é sem controle, o real. E ele realmente acredita. Passa a usar esta nomeação como um escudo ante o incompreensível, ante a contingência. A esta nomeação, em psicanálise, nomeamos, entre outros nomes, como Nome-do-Pai. Este é o grande responsável por possibilitar ao sujeito o encontro com o outro, isto é, leva-o à possibilidade do laço social.
E o que é um pai? Em psicanálise, entendemos que um pai é aquele que separa a criança da mãe, de uma boa maneira, “quer ele queira ou não”. Assim, a palavra pai ocupa o lugar de função.[2] Lacan é aquele que “liberta o pai freudiano da situação concreta, familiar, em que aparentemente estava localizado. Invertem-se os dados: em vez de ‘O pai é a origem’, teremos ‘O que for, para um sujeito, a origem será o pai’”[3].
Nas palavras de Esthela Solano-Suarez, “o Nome-do-Pai, na psicanálise, é um instrumento para resolver o gozo pelo sentido”[4].
Leonardo Gorostiza diz que a função paterna é dar ancoragem ao sujeito. Uma ancoragem de duas faces: de um lado identificatória e de outro como reguladora dos modos de satisfação. “Sem esses pontos de apoio e regulação, fonte de produção de sentido, o sujeito cai – literalmente – à deriva.”[5]
No texto “A outilidade do pai”[6], Sérgio de Campos nos lembra que um pai serve como bússola, como guia moral para um filho. Ante uma criança, ele oferece segurança, e serve como fonte de identificação. É “uma muralha alta e espessa, (que) interpõem-se entre a criança e as necessidades vitais, as responsabilidades da vida, as dores do mundo e os riscos de morte. O pai, portanto, serve como uma muralha em cuja sombra o filho floresce”.
Mas se o neurótico usa este Nome-do-Pai para se identificar e também para tornar possível o seu encontro com a satisfação; mas se o neurótico acredita muito neste Nome ao ponto de fazer grande esforço para sustentá-lo como um Nome potente; mas se o neurótico usa este Nome para responder a si o que quer o Outro e poder seguindo a vida nesta crença, sabemos que hora ou outra, este Nome vai padecer, vai falhar, não vai responder com garantias àquilo que não tem medida, nem nunca terá, que não tem governo, nem nunca terá, mas que pelo menos podemos dar um nome: Real.
Quanto à muralha, “com o crescimento da criança, reduz sua altura e sua espessura até o momento em que se pode perceber, por intermédio de suas falhas, frestas e rachaduras, que não é, nem foi, tão resistente e segura quanto se imaginou”[7].
A angústia surge então como uma das possibilidades de resposta ante ao fracasso deste Nome. Deste nome que vez ou outra se torna muito pequenino e impotente. O sintoma também é prova da falha do Nome. O sintoma também pode ser a prova do esforço do neurótico para dar consistência ao Outro. E se o Nome-do-Pai está em decadência na cultura é por pura repetição do que acontece no nível do sujeito, com o crescimento da criança. Talvez tenhamos crescido no nível da cultura, ao ponto de percebermos a falência do pai.
Sabemos que um sujeito até pode se virar bem com seu sintoma, vez outra sofrendo, com angústia, quem sabe... Pode ser que um sujeito não queira nunca abrir mão de seu sintoma, e de seu esforço em dar consistência ao Outro. Felizmente também sabemos que para àqueles que sofrem de um mal a mais (Plus de mal), e que por contingência da vida puderam encontrar um analista, há o que se fazer.
E qual é a operação efetuada em uma análise no que diz respeito a esta nomeação paterna? Seria função de uma análise restaurar a imagem do velho pai? Seria função de uma análise fazer com que o sujeito desconsidere o pai?
Lacan, no Seminário 23[8], traz a expressão l´homme pours-père. Em um jogo com a palavra pours-père encontra-se uma ambigüidade: o pai faz o homem prosperar, e o homem é a finalidade do pai. Somado a estas duas, outro sentido homofônico: pourrir en espérant, que significa “apodrecer esperando”. Assim, na mesma medida em que se pode prosperar a partir do pai, também é possível apodrecer esperando que este Nome continue dando sentido, continue sendo equivalente ao demandado. Que o pai tenha sido útil ao ponto de interpor-se entre a criança e o desejo da mãe; útil em preencher um pouco o buraco sofrido pela extração de um objeto, não permite que se possa esperar que seja potente para sempre, ao preço de se apodrecer esperando.
Sérgio de Campos com sua bela metáfora nos auxilia: “Reduzido a um semblante, o pai faz com que o filho passe a enxergar o mundo por cima de um frágil biombo de papel, sendo esse, via de regra, um momento de metamorfose vivido como luto, em que ele prescinde do muro (do pai) depois de ter se servido dele”[9]. Nem restaurar a imagem paterna, nem desconsiderá-la, mas fazer um nome próprio deste que lhe foi dado como herança. Formular uma pére-version, agora com letra minúscula, sem o peso do Ideal, e também precedida por artigo indefinido (uma) já que pode também ser outra.


[1] GALEANO, Eduardo. A função da arte 1. In: O livro dos abraços. Porto Alegre: L&PM, 2000, p. 15.

[2] LAURENT. Éric. Um novo amor pelo pai. In: Opção Lacaniana, n. 46. São Paulo, 2007, p. 20-29.
[3] VIEIRA, Marcus André. Retrato falado de um totem sem tabu (ou a hipermodernidade sertaneja). In: Latusa, n. 11. Rio de Janeiro, 2006, p. 13.

[4] SOLANO-SUAREZ, Esthela. Gozo. In: Scilicet dos Nomes do Pai. 2006, p. 67.

[5] GOROSTIZA. Leonardo. Autoridade. In: Scilicet dos Nomes do Pai. 2006, p. 25

[6] CAMPOS, Sérgio de. A outilidade do pai. In: Curinga, n. 23, Nov de 2006. EBP-MG, p.74.

[7] Idem.
[8] Conforme referência de Sérgio de Campos. Op. cit.
[9] Idem.

sábado, 30 de junho de 2007

verdade, fantasia

Para que serve a fantasia? Para que serve a imaginação? Para que servem estes artefatos que nunca dão conta da verdade?
Eu não sou o que eu pensava. O outro não é o que eu pensava. E o que ele quer de mim? Só posso imaginar, fantasiar, interpretar e assim, me enganar. E esta fantasia se veste com a roupa da verdade. Roupa tão justa, tão colada, número perfeito, corte perfeito.
Perfeito? Até o dia em que o Outro nos surpreende com a não aceitação do objeto que fabricamos com tanto esforço, com tanto suor e com a certeza de que é exatamente este objeto o que o Outro queria de mim. O Outro o recusa! Mas não era o que ele queria? Então, o quer o Outro de mim? Eu não sabia o que ele queria? Eu imaginava, fantasiava e me enganava. Pura ilusão!
E por que nos enganamos? Por que criamos historinhas explicativas a respeito de nossa vida, a respeito do outro e a respeito da natureza? Por que ficamos com a forte impressão de que estas historinhas contadas são A verdade? Por que temos que dar sentido às coisas?
Aprendemos que quem vive no esforço de dar sentido às coisas é o neurótico. Então seria a ciência uma neurótica?
Os neuróticos estão a todo tempo remetendo seus acontecimentos a uma explicação qualquer... científica, religiosa, psicanalítica... Estão sempre articulando significantes para dar conta da verdade do que lhes acontece.
Mas para que se queixar disto? Aliás, não é da falta disto do que nos queixamos quando pensamos os novos sintomas? Era baseada nestas historinhas possíveis contadas pela pessoa submetida à análise que a psicanálise estabelecia sua técnica. E agora, diante dos que não conseguem articular alguma causalidade no que diz respeito ao que lhe acontece, temos que reinventar a psicanálise.
Mas não é dos novos sintomas que se trata este trabalho, e sim dos velhos. Das velhas formas de articular a própria existência a alguma fantasia originária.
Podemos perceber como a necessidade de dar sentido ao que nos acontece acompanha, talvez cada vez menos, a nossa existência. É famoso o questionamento infantil a respeito de tudo que podem perceber a sua volta. É vulgarmente conhecida a existência de uma fase infantil que se chama a fase dos por quês. As crianças querem saber os por quês de tudo o que está a sua volta. Querem saber sobre a origem da vida, sobre a diferença dos sexos, e também sobre outras coisas aparentemente menos significativas.
Assim, diante de nossa ignorância criamos explicações fantasiosas que acabam sendo estabelecidas como as verdades de nossa existência.
Mas a pergunta ainda persiste: por que não nos contentamos com o fato sem querermos as explicações sobre sua origem? Há quem diga que para dominar a natureza, o homem precisou conhecê-la. Buscando a origem, se pode prever os fatos e dominá-los.
E o que pode dizer a psicanálise a esse respeito? Como dito anteriormente, a técnica psicanalítica, na sua origem, se baseia, sobretudo, na articulação causal que o paciente pode fazer no que diz respeito a sua queixa.
Em Freud podemos nos remeter a idéia de que essas histórias contadas pelos pacientes a respeito de seu sintoma e de sua vida, têm ligação com o fato de que diante da falta estabelecida pela castração, precisam criar algum artifício que os levem a crer na completude originária, bem como na possibilidade de readquiri-la.
Ainda, freudianamente, podemos citar a passagem do Eu Ideal para o Ideal de Eu como causa das invenções do homem frente a sua própria existência. Com o Eu Ideal temos a noção de completude, de que se é o ideal, de que se é todo e completo. É na mítica fusão inicial com a mãe que se estabelece a crença neste momento de completude. Mãe e filho num único corpo formando um todo. Ainda podemos dizer que diante da primeira insatisfação, o bebê alucina o peito da mãe. Nega aí a falta e cria uma ilusão. Possivelmente a primeira dentre muitas ilusões que vamos inventar na vida.
Constatamos assim, a idéia de que há, na psicanálise freudiana, o momento da completude. O todo existe! Mesmo que seja perdido.
Porém, a castração se impõe. A realidade se impõe. E diante desta realidade, e acreditando na idéia de que em algum momento éramos Todo e Ideal, criamos uma história cuja qual se crê que poderá nos restituir como completo no desejo do outro. Criamos um Ideal de Eu, aquilo que segundo se acredita, se alcançado, nos levará a ser novamente perfeitos.
Já em Lacan, não mais a realidade, é o Real o que se impõe. O Real contingente, insuportável, sinistro, não pode ser encarado pelos humanos a olhos nus, assim, vestimos os óculos da fantasia. O Imaginário e o Simbólico nos protegem dele.
O Imaginário e o Simbólico disfarçam o Real e assim, defendem o sujeito deste insuportável que é o sem sentido da existência.
Fantasia é o nome que damos a estas histórias imaginadas a fim de apreender o Real. A fantasia tem agregada em si o Simbólico, o Imaginário e também o Real.
Estas historietas permitem algum contato com o real, elas servem ao mesmo tempo, e em um mesmo movimento, para escondê-lo. (...) Elas vêm tapar o buraco onde o real ameaça penetrar. A primeira e mais fundamental maneira de fazê-lo é dando sentido. A fantasia é assim um conto imaginário que tem uma vertente simbólica/significante e também uma vertente real (VIEIRA, p. 10).
Lacan, no avesso da psicanálise diz que “...nós, seres de fragilidade, temos necessidade de sentido” (Lacan, p. 13, 1992). E este sentido não pode ser dado senão como construído numa fantasia. A fantasia, diz Lacan, é um real que esconde a verdade.
Mas o que é a verdade? Ainda seguindo o Lacan, dizemos que a verdade é algo que se situa entre nós e o Real. A verdade não é o Real.
Enquanto em Freud a relação analítica é fundada no amor à verdade, em Lacan, a ênfase está no “que escapa ao sentido, ao que ultrapassa tudo que é da ordem da verdade mas que manifesta algo de mais cru e duro (...). A verdade é impotente, ela faz ficar vagando em seus mortíferos labirintos” (CERVELATTI, p.1,).
Assim, numa análise, todas as histórias contadas, todas as associações e formações do inconsciente, surgem nesta dupla função: dizer sobre a verdade do sujeito e ao mesmo tempo velá-la. Mil histórias contadas e articuladas a mesma cena. Mil associações possíveis. O que fazer com tudo isto? Onde paira o Real no meio destas invenções fantasmáticas? No esgotamento desta arte inesgotável de dar outros possíveis sentidos, surge a pergunta: o que resta para além destes possíveis sentidos a serem dados? “Producimos más sentido del necesario. Producimos sentido em exceso al punto de ser asfixiados por él.” (MALENGREAU, p. 3, 2006).
Não fique doido por uma verdade, diz Lacan. O inconsciente, “a máquina de dar sentido”, inventa, como a maior das defesas, a própria verdade. Como instrumento do trabalho do psicanalista, a verdade é traiçoeira. Ela engana, faz pensar que deve sim existir uma verdade última, ou um sentido último.
“O percurso da análise deve então seguir a retomada destas histórias e o progressivo esvaziamento de seu valor pulsional até que se chegue a uma formulação mínima, onde não há mais dentro e fora, nem sujeito e agente (...) As histórias continuarão lá, mas o sujeito, menos escravo de seus dramas, pode então adquirir uma maior leveza (e não uma maior liberdade) com relação à cadeia de suas determinações. É uma maneira de entendermos a conhecida afirmação freudiana segundo a qual a análise transforma a tragédia do neurótico em drama banal” (VIEIRA, p. 10).
E assim, que se possa concluir que “...no es necesario mucho sentido para vivir. Um poco de saber-hacer com aquello que no tiene sentido alcanza.” (FINK, p.3, 2006)



Referências Bibliográficas

CERVELATTI, Carmem Silva. Não fique doido por uma verdade. (Site EBP)
FINK, Bruce. Fantasias y el fantasma fundamental: uma introducción. Virtualia – Revista Digital de la Escuela de la Orientacción Lacaniana. Jun/Jul-2006
MALENGREAU, Pierre. El acto, aún. Virtualia – Revista Digital de la Escuela de la Orientacción Lacaniana. Jan/Fev-2006.
MONTEIRO, Elisa. Sintoma, fantasia e pulsão. 1997. (Site EBP)
NUNES, Laureci. A descoberta freudiana da fantasia fundamental. In: Fênix.
LACAN, Jacques. O Seminário – livro 17: o avesso da psicanálise. Jorge Zahar Editor: Rio de Janeiro, 1992.
VIEIRA, Marcos André. Da realidade ao real – Jacques Lacan e a realidade psíquica. (Site EBP)

quarta-feira, 30 de maio de 2007

Sujeito Suposto Saber

Como é sabido pelos estudantes e afiliados da psicanálise lacaniana, um dos motivos que gerou o rompimento de Lacan com a Associação Internacional de Psicanálise, diz respeito ao lugar ocupado pelo analista. Os analistas da instituição mais ortodoxa da psicanálise não gostaram de ouvir que não são muito mais do que ocupantes de um lugar de suposição. Lacan deu ao analista o título de Sujeito Suposto Saber.
Aos analistas da IPA, isso soou ameaçador, como se com tal esclarecimento fosse, de fato, perder sua função, como se fossem realmente cair em descrédito. Lacan anunciou a nudez dos Reis da Psicanálise, e esse encontro com o Real da função analítica não poderia deixar de presentificar-se na forma de mal-estar.
Mas o que aqueles analistas parecem não ter aprendido com Freud, é que a teoria e a prática da psicanálise nos mostram que o que se diz a um paciente só tem alcance se encontra eco nos referenciais psíquicos deste, ou melhor, os seres humanos não podem ser tocados subjetivamente por uma informação que não participe de seu conteúdo psíquico.
Neste caso, o fato de o mestre dizer que não é o mestre, depois de ter sido reconhecido como tal por alguém que se subordinou nesta relação, não alcança nenhum reconhecimento significativo no outro.
Sócrates, o sábio que nada sabia, já era bem sabido neste assunto. Não hesitou em dizer o tão conhecido aforismo “sei que nada sei”. Apesar do impacto causado pela afirmação, ou talvez, por causa disto mesmo, Sócrates a mais de dois milênios ocupa lugar central, como mestre, no discurso e no imaginário de nossa cultura. Talvez, porque somente os que sabem muito podem, sem preocupação, nem constrangimento, colocar este lugar de saber a disposição.
O lugar que o mestre ocupa só se desfaz quando o que está submetido sai desta condição a partir dos questionamentos feitos a respeito de sua posição de submissão, isto é, quando se questiona sobre si mesmo e não sobre o outro.
Então, se aqueles analistas sentiram-se preocupados em perder a função de analistas pelo questionamento interno sobre seu lugar de mestria, realmente foram dignos de sofrer as duras críticas de seus dissidentes. Analistas que delirantemente crêem serem mestres, no mínimo, não possibilitarão a seus pacientes chegarem ao fim de suas análises. O Saber do mestre inibe o Saber do Sujeito do Inconsciente.
Em determinado momento de seu ensino Lacan se questiona sobre o que deve saber, em uma análise, o analista. E a resposta que se dá é que o psicanalista deve saber ignorar o que sabe. É somente na ignorância garantida em si mesmo que o analista permite entrar em questão o Sujeito do Inconsciente, isto é, os saberes que estão do lado daquele que vai a procura de sua análise.
Freud também já havia recomendado que cada paciente fosse analisado como se fosse o primeiro de um analista. Isto não significa outra coisa senão que o saber elaborado em uma determinada análise, diz respeito somente ao particular do sujeito em questão. Este não saber, que se dá na função do analista é o que propicia, o que causa o movimento, no analisante de dar conta de seu saber, saber este que dirá algo da verdade de um Sujeito, na singularidade, nunca por completa.
Semi-verdade que vai ser dita a partir do amor endereçado a quem supostamente tem o Saber, mas que só vai ser encarada com tal, isto é, verdade, mas não toda, na medida em que se confrontar com a queda deste ideal suposto.
O analista configura-se para o paciente como aquele que sabe, é um Outro para qual o sujeito transmite seu saber. “ Um sujeito a quem se supõe um saber sobre o que seria sua verdade” (Lima, 2001, p. 4). E se supõe que o outro tem isso que é da verdade do Sujeito que vai a análise, não é por outra via senão a do amor de transferência.
É pela ignorância do analista, que o paciente vai a busca do que se configura como sua cena fantasmática, sua fantasia fundamental, causadora do Sujeito e das vicissitudes de sua existência. Esta fantasia adquiriu status de verdade, de verdade constitutiva. E este saber sobre esta cena fundamental é o que, de fato, importa no percurso analítico.
Neste percurso, a queda inicial do Sujeito Suposto Saber cede lugar ao amor pelo inconsciente. Sujeito Suposto Inconsciente?
A fantasia, base do Sujeito do Inconsciente e que confere ao Outro a suposição de saber, não será digna de ser tratada como um saber somente para que mais tarde possa perder este status? Segundo Lacan, sujeito suposto é um termo redundante, pleonástico, já que sujeito nunca pode ser senão suposto. Assim, o Sujeito do Inconsciente também é um sujeito suposto. E se continuarmos em dedução, não poderíamos pensar que o saber que se espera ouvir do Sujeito do Inconsciente sobre suas fantasias originárias também é um Suposto Saber? Sujeito Suposto Saber não seria, então, o paciente?

terça-feira, 27 de março de 2007

psicanálise X tcc

“A vida em preto e branco” é um filme que conta a história de um rapaz que assistia um seriado de tv chamado Pleasantville. O rapaz era um exímio conhecedor de todo o seriado, sabia de cor todas as falas e todos os comportamentos dos personagens. Filho de pais separados e descontente com o comportamento da mãe, tem uma irmã que vive liberadamente os prazeres sexuais na juventude.
Brigando pelo uso da televisão, ao apertar um controle remoto, os dois irmãos entram na tv e começam a viver como personagens do seriado.
A cidade de Pleasantville era composta pela rua principal e pela rua secundária. O fim da rua principal era o início da mesma. Não existia o fora em Pleasantville, e todos os comportamentos dos personagens, prescritos como destino por um roteiro, eram rotineiros, habituais e sem novidade alguma. Ao alcançar 6 horas no relógio da sala, o marido abre a porta e diz: “querida, cheguei”, a mulher, com um belo sorriso, coloca uma bandeja de bolinhos sobre a mesa.
O rapaz conhecia o seriado, de modo que sabia como comportar-se em cada cena, já a moça, irritada por estar ali, não via nenhum objetivo para atuar segundo o roteiro original da história. Assim, com suas atitudes não padronizadas, a garota começa a causar certa desordem e em conseqüência caos na cidade de Pleasantville.
Os outros personagens do seriado, diante do inusitado não sabem como comportar-se. Como o roteiro vai mudando eles não sabem mais como devem agir. Os fatos não correspondem mais ao roteiro prescrito. Os personagens começam a demonstrar angústia, tristeza, confusão, comportamentos repetitivos... Porém, em meio a esta desordem instalada, as pessoas começam a descobrir desejos e prazeres, e Pleasantville, na cidade em que só existiam três cores: o preto, o branco e o cinza, outras cores começam a aparecer.

Ante ao caos instalado na cidade pelos comportamentos não escritos no roteiro original do seriado, podemos nos questionar sobre o porquê dos habitantes não conseguirem reagir sem maiores transtornos.
Jacques-Alan Miller nos ajuda a resolver o mistério, quando diz:
“Se produce um trauma cuando um hecho entra em oposición com um dicho, com um dicho esencial de la vida del paciente, cuando hay uma contradicción entre el hecho y lo dicho” (Efectos terapêutico rápidos).
Não poderíamos encontrar um melhor modelo para compreender a relação com o dito/roteiro e o fato/o que acontece na cena. Os habitantes de Pleasantville diante da contradição entre o roteiro e o que de diferente se estabelecia não puderam dar nenhuma resposta senão outra digna de uma reação traumática. O roteiro – dito essencial da vida destes personagens – fora ignorado pelos fatos que se sucederam. Mas os personagens não puderam ignorar nem o roteiro e nem os novos fatos: criou-se o caos.
E assim se produz sintoma, quando um dito essencial da vida sujeito entra em oposição com um fato. O sujeito não pode ignorar o dito que é estabelecido como a verdade de sua vida, mas também não pode ignorar o fato. Assim, para situar-se entre o dito e o fato estabelece-se numa posição sintomática.
Jorge Forbes com outras palavras, também nos ajuda a entender a questão. Afirma, em uma apresentação no “Café filosófico” – programa apresentado pela TV Cultura, que só existe adversidade para aquele que acha que existe uma versão principal. “Se eu tiver uma multiplicidade de versões, eu não tenho adversidade”, diz. Isto é, se multiplicar os ditos, se poderá ter menos contradição com os fatos.
Ante ao mal-estar instituído pelo caos, ou pela adversidade, múltiplas formas de lidar com este vão sendo desenvolvidas pelo mundo afora. O sujeito que sofre precisa ser tratado! E os tratamentos sempre foram das espécies mais diversificadas em toda a história da humanidade.
Nos últimos tempos, temos vivido uma época em que se crê poder controlar o mal-estar e ainda, muitas vezes, o que lhe causa.
O filme de que aqui se fala inicia com uma aula na qual a professora expõe as estatísticas da fome e de alguns perigos a que a humanidade está submetida. Assim, cria-se primeiro o medo, a cultura do medo e as estatísticas do medo. As estatísticas são a base para o controle. Diante das estatísticas do medo queremos estar fora delas e então pedimos pelo controle. Pedimos por uma vida controlada e agradável.
A Terapia Cognitiva Comportamental é uma forma moderna de se tratar o sofrimento psíquico. Através de técnicas de adaptação, aprendizagem e controle, promete aos pacientes a supressão dos sintomas que os fazem sofrer. É, sobretudo, uma terapia em que o saber sobre o que deve se fazer com o sintoma e a forma de fazê-lo vem do outro, mostrando assim, que está longe de querer emancipar o sujeito. Não há espaço para as diferenças e para outros desejos. Há um protocolo inicial que diz o que é bem-estar e saúde.
O problema da TCC é que ao calar o sujeito, as diferenças e controlarem os sintomas ou que o faz doer no sujeito ante o Real, é que torna o sujeito ainda mais frágil e despreparado ante o imprevisível e caótico que sempre se impõe. A questão é que nosso mundo não é Pleasantville antes da invasão dos desejantes. Em nosso mundo, mesmo que passássemos todos por uma boa terapia cognitiva comportamental, mesmo que todos fossemos controlados, em nosso mundo, o Real (como as tempestades, os acidentes) não deixará de existir. O Real se imporá sempre, e sem lei, sem ordem, nem previsão. E o que nos resta é possibilitar aos sujeitos que alarguem suas versões sobre o que podem suportar no mundo. Que alarguem as fronteiras de suas idealizações e que possam então saber-fazer com o que lhes acontece.
Este é, sobretudo, o objetivo de uma análise. Diz Jorge Forbes: “O objetivo de uma análise não é reforçar o ego. Formar uma pessoa cheia de certezas do que ela quer, do que ela faz, um bom administrador da vida. O objetivo de uma análise é formar um homem pronto a todas as circunstâncias – não preconizando o cinismo. Não quer dizer que não tem nenhum tipo de eixo, de amarração, não é o homem ilimitado, não é o homem pode-tudo, não é o homem ‘liberou geral’. É o homem que destituído do peso das identificações verticais (que são, na maior parte, peso, nostalgia, constrangimento, mortificação)” pode ter um novo modo de enfrentar as novas versões apresentadas na vida, não mais como adversidades.
Dizer que o mundo ficaria chato sem as diferenças, com as pessoas iguais, ou robotizadas, com o controle exacerbado é não dar o devido valor ao fato. Não é isso! O mundo, ou a nossa vida, ficaria ainda mais frágil e em risco.
No final do filme, dois personagens, sentados num banco dizem sorrindo: “eu não sei o que vai acontecer”. Romanticamente ouvimos repetidamente que a vida seria um tédio se tudo fosse sempre igual e previsível, que o bom da vida é não saber o que nos espera. Mas o bom da vida, não é simplesmente que não sabemos o que vai acontecer, o bom da vida mesmo, é quando podemos saber-fazer algo diante do imprevisível.
O que vai acontecer, eu não sei. E não me basta que um sintoma tenha sido curado para que eu possa não criar outro diante de novos confrontamentos com o Real que necessariamente me acontecerão. Para além do sintoma, há um sujeito que precisa rever sua posição ante as adversidades, os traumas, o caos, o Real.

Amor pela psicanálise


Quando pensamos em uma escola, em geral, nos vem à cabeça um lugar onde passamos para aprender determinadas coisas que farão alguma diferença em nossa vida. Esta escola nos forma para o depois. Ela é um lugar de passagem, lugar que pressupõe uma verdade, na qual o que irá se modificar é a pessoa que a ela se submeter.
Mas, quando se trata de psicanálise, não poderíamos pensar em uma escola deste molde. Uma escola que forma para depois. Uma escola em que se pressupõe uma verdade, na qual os sujeitos podem se formar. Se numa escola psicanalítica, as pessoas estão em constante aprendizagem, não é para depois. Espera-se, nesta, que os sujeitos não se formem, ou não se sintam formados, a ponto de abandoná-la, como fazemos com as outras escolas. A formação em uma escola psicanalítica não tem fim, nunca chega à hora de se diplomar. Quem entra numa escola como esta, entra com o objetivo de não sair.
Mas por quê? Primeiro, porque já sabemos que a formação do analista nunca chega ao final. A formação é infinita. E segundo, por que a verdade, geralmente digno objeto de uma escola, não é, ou não pode ser, total numa escola psicanalítica. Esta escola nunca sabe o todo, nunca tem o saber absoluto. Mas apesar de saber que nunca poderá oferecer uma verdade totalizante, não cessa de se pôr à busca de mais saber. Porque quem, ou melhor, o que está em formação nesta escola, não são apenas seus membros ou quem ao redor dela se situa, mas sim a própria psicanálise. Se existe um aluno nesta escola que nunca se forma é a própria psicanálise. E é ela para a qual todas as atenções se dirigem, é para a formação dela que todos trabalham. É para que ela possa aprender a ser um digno instrumento para olhar e tratar o mal-estar da época presente é que se trabalha sem cessar.
É nesta escola de psicanálise que acredito! É nesta escola de psicanálise em que, como analista, quero dedicar minha formação continuada e permanente, e fazer do meu trabalho e dedicação, uma fonte de saber para a psicanálise. Para que a psicanálise possa ser sempre viva, sempre a altura de seu tempo.