terça-feira, 27 de março de 2007

psicanálise X tcc

“A vida em preto e branco” é um filme que conta a história de um rapaz que assistia um seriado de tv chamado Pleasantville. O rapaz era um exímio conhecedor de todo o seriado, sabia de cor todas as falas e todos os comportamentos dos personagens. Filho de pais separados e descontente com o comportamento da mãe, tem uma irmã que vive liberadamente os prazeres sexuais na juventude.
Brigando pelo uso da televisão, ao apertar um controle remoto, os dois irmãos entram na tv e começam a viver como personagens do seriado.
A cidade de Pleasantville era composta pela rua principal e pela rua secundária. O fim da rua principal era o início da mesma. Não existia o fora em Pleasantville, e todos os comportamentos dos personagens, prescritos como destino por um roteiro, eram rotineiros, habituais e sem novidade alguma. Ao alcançar 6 horas no relógio da sala, o marido abre a porta e diz: “querida, cheguei”, a mulher, com um belo sorriso, coloca uma bandeja de bolinhos sobre a mesa.
O rapaz conhecia o seriado, de modo que sabia como comportar-se em cada cena, já a moça, irritada por estar ali, não via nenhum objetivo para atuar segundo o roteiro original da história. Assim, com suas atitudes não padronizadas, a garota começa a causar certa desordem e em conseqüência caos na cidade de Pleasantville.
Os outros personagens do seriado, diante do inusitado não sabem como comportar-se. Como o roteiro vai mudando eles não sabem mais como devem agir. Os fatos não correspondem mais ao roteiro prescrito. Os personagens começam a demonstrar angústia, tristeza, confusão, comportamentos repetitivos... Porém, em meio a esta desordem instalada, as pessoas começam a descobrir desejos e prazeres, e Pleasantville, na cidade em que só existiam três cores: o preto, o branco e o cinza, outras cores começam a aparecer.

Ante ao caos instalado na cidade pelos comportamentos não escritos no roteiro original do seriado, podemos nos questionar sobre o porquê dos habitantes não conseguirem reagir sem maiores transtornos.
Jacques-Alan Miller nos ajuda a resolver o mistério, quando diz:
“Se produce um trauma cuando um hecho entra em oposición com um dicho, com um dicho esencial de la vida del paciente, cuando hay uma contradicción entre el hecho y lo dicho” (Efectos terapêutico rápidos).
Não poderíamos encontrar um melhor modelo para compreender a relação com o dito/roteiro e o fato/o que acontece na cena. Os habitantes de Pleasantville diante da contradição entre o roteiro e o que de diferente se estabelecia não puderam dar nenhuma resposta senão outra digna de uma reação traumática. O roteiro – dito essencial da vida destes personagens – fora ignorado pelos fatos que se sucederam. Mas os personagens não puderam ignorar nem o roteiro e nem os novos fatos: criou-se o caos.
E assim se produz sintoma, quando um dito essencial da vida sujeito entra em oposição com um fato. O sujeito não pode ignorar o dito que é estabelecido como a verdade de sua vida, mas também não pode ignorar o fato. Assim, para situar-se entre o dito e o fato estabelece-se numa posição sintomática.
Jorge Forbes com outras palavras, também nos ajuda a entender a questão. Afirma, em uma apresentação no “Café filosófico” – programa apresentado pela TV Cultura, que só existe adversidade para aquele que acha que existe uma versão principal. “Se eu tiver uma multiplicidade de versões, eu não tenho adversidade”, diz. Isto é, se multiplicar os ditos, se poderá ter menos contradição com os fatos.
Ante ao mal-estar instituído pelo caos, ou pela adversidade, múltiplas formas de lidar com este vão sendo desenvolvidas pelo mundo afora. O sujeito que sofre precisa ser tratado! E os tratamentos sempre foram das espécies mais diversificadas em toda a história da humanidade.
Nos últimos tempos, temos vivido uma época em que se crê poder controlar o mal-estar e ainda, muitas vezes, o que lhe causa.
O filme de que aqui se fala inicia com uma aula na qual a professora expõe as estatísticas da fome e de alguns perigos a que a humanidade está submetida. Assim, cria-se primeiro o medo, a cultura do medo e as estatísticas do medo. As estatísticas são a base para o controle. Diante das estatísticas do medo queremos estar fora delas e então pedimos pelo controle. Pedimos por uma vida controlada e agradável.
A Terapia Cognitiva Comportamental é uma forma moderna de se tratar o sofrimento psíquico. Através de técnicas de adaptação, aprendizagem e controle, promete aos pacientes a supressão dos sintomas que os fazem sofrer. É, sobretudo, uma terapia em que o saber sobre o que deve se fazer com o sintoma e a forma de fazê-lo vem do outro, mostrando assim, que está longe de querer emancipar o sujeito. Não há espaço para as diferenças e para outros desejos. Há um protocolo inicial que diz o que é bem-estar e saúde.
O problema da TCC é que ao calar o sujeito, as diferenças e controlarem os sintomas ou que o faz doer no sujeito ante o Real, é que torna o sujeito ainda mais frágil e despreparado ante o imprevisível e caótico que sempre se impõe. A questão é que nosso mundo não é Pleasantville antes da invasão dos desejantes. Em nosso mundo, mesmo que passássemos todos por uma boa terapia cognitiva comportamental, mesmo que todos fossemos controlados, em nosso mundo, o Real (como as tempestades, os acidentes) não deixará de existir. O Real se imporá sempre, e sem lei, sem ordem, nem previsão. E o que nos resta é possibilitar aos sujeitos que alarguem suas versões sobre o que podem suportar no mundo. Que alarguem as fronteiras de suas idealizações e que possam então saber-fazer com o que lhes acontece.
Este é, sobretudo, o objetivo de uma análise. Diz Jorge Forbes: “O objetivo de uma análise não é reforçar o ego. Formar uma pessoa cheia de certezas do que ela quer, do que ela faz, um bom administrador da vida. O objetivo de uma análise é formar um homem pronto a todas as circunstâncias – não preconizando o cinismo. Não quer dizer que não tem nenhum tipo de eixo, de amarração, não é o homem ilimitado, não é o homem pode-tudo, não é o homem ‘liberou geral’. É o homem que destituído do peso das identificações verticais (que são, na maior parte, peso, nostalgia, constrangimento, mortificação)” pode ter um novo modo de enfrentar as novas versões apresentadas na vida, não mais como adversidades.
Dizer que o mundo ficaria chato sem as diferenças, com as pessoas iguais, ou robotizadas, com o controle exacerbado é não dar o devido valor ao fato. Não é isso! O mundo, ou a nossa vida, ficaria ainda mais frágil e em risco.
No final do filme, dois personagens, sentados num banco dizem sorrindo: “eu não sei o que vai acontecer”. Romanticamente ouvimos repetidamente que a vida seria um tédio se tudo fosse sempre igual e previsível, que o bom da vida é não saber o que nos espera. Mas o bom da vida, não é simplesmente que não sabemos o que vai acontecer, o bom da vida mesmo, é quando podemos saber-fazer algo diante do imprevisível.
O que vai acontecer, eu não sei. E não me basta que um sintoma tenha sido curado para que eu possa não criar outro diante de novos confrontamentos com o Real que necessariamente me acontecerão. Para além do sintoma, há um sujeito que precisa rever sua posição ante as adversidades, os traumas, o caos, o Real.

Amor pela psicanálise


Quando pensamos em uma escola, em geral, nos vem à cabeça um lugar onde passamos para aprender determinadas coisas que farão alguma diferença em nossa vida. Esta escola nos forma para o depois. Ela é um lugar de passagem, lugar que pressupõe uma verdade, na qual o que irá se modificar é a pessoa que a ela se submeter.
Mas, quando se trata de psicanálise, não poderíamos pensar em uma escola deste molde. Uma escola que forma para depois. Uma escola em que se pressupõe uma verdade, na qual os sujeitos podem se formar. Se numa escola psicanalítica, as pessoas estão em constante aprendizagem, não é para depois. Espera-se, nesta, que os sujeitos não se formem, ou não se sintam formados, a ponto de abandoná-la, como fazemos com as outras escolas. A formação em uma escola psicanalítica não tem fim, nunca chega à hora de se diplomar. Quem entra numa escola como esta, entra com o objetivo de não sair.
Mas por quê? Primeiro, porque já sabemos que a formação do analista nunca chega ao final. A formação é infinita. E segundo, por que a verdade, geralmente digno objeto de uma escola, não é, ou não pode ser, total numa escola psicanalítica. Esta escola nunca sabe o todo, nunca tem o saber absoluto. Mas apesar de saber que nunca poderá oferecer uma verdade totalizante, não cessa de se pôr à busca de mais saber. Porque quem, ou melhor, o que está em formação nesta escola, não são apenas seus membros ou quem ao redor dela se situa, mas sim a própria psicanálise. Se existe um aluno nesta escola que nunca se forma é a própria psicanálise. E é ela para a qual todas as atenções se dirigem, é para a formação dela que todos trabalham. É para que ela possa aprender a ser um digno instrumento para olhar e tratar o mal-estar da época presente é que se trabalha sem cessar.
É nesta escola de psicanálise que acredito! É nesta escola de psicanálise em que, como analista, quero dedicar minha formação continuada e permanente, e fazer do meu trabalho e dedicação, uma fonte de saber para a psicanálise. Para que a psicanálise possa ser sempre viva, sempre a altura de seu tempo.