segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

do Nome-do-Pai a uma père-version

“Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar.
Viajaram para o Sul.
Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.
Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.
E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:
– Me ajuda a olhar!”[1]

Sabemos que o neurótico é aquele que precisa inventar o pai para dar conta de um gozo no corpo, para dar conta deste gozo que aparece como excessivo, imenso. Ante o irrepresentável que emudece, o neurótico é aquele que inventa um Nome. Pede ao pai um Nome. Pede ao pai que dê sentido, significação, àquilo que aparece como fora do campo das significações.
O que justamente acontece com o neurótico é que ele pode acreditar neste Nome dado que supostamente esconde isto que é sem controle, o real. E ele realmente acredita. Passa a usar esta nomeação como um escudo ante o incompreensível, ante a contingência. A esta nomeação, em psicanálise, nomeamos, entre outros nomes, como Nome-do-Pai. Este é o grande responsável por possibilitar ao sujeito o encontro com o outro, isto é, leva-o à possibilidade do laço social.
E o que é um pai? Em psicanálise, entendemos que um pai é aquele que separa a criança da mãe, de uma boa maneira, “quer ele queira ou não”. Assim, a palavra pai ocupa o lugar de função.[2] Lacan é aquele que “liberta o pai freudiano da situação concreta, familiar, em que aparentemente estava localizado. Invertem-se os dados: em vez de ‘O pai é a origem’, teremos ‘O que for, para um sujeito, a origem será o pai’”[3].
Nas palavras de Esthela Solano-Suarez, “o Nome-do-Pai, na psicanálise, é um instrumento para resolver o gozo pelo sentido”[4].
Leonardo Gorostiza diz que a função paterna é dar ancoragem ao sujeito. Uma ancoragem de duas faces: de um lado identificatória e de outro como reguladora dos modos de satisfação. “Sem esses pontos de apoio e regulação, fonte de produção de sentido, o sujeito cai – literalmente – à deriva.”[5]
No texto “A outilidade do pai”[6], Sérgio de Campos nos lembra que um pai serve como bússola, como guia moral para um filho. Ante uma criança, ele oferece segurança, e serve como fonte de identificação. É “uma muralha alta e espessa, (que) interpõem-se entre a criança e as necessidades vitais, as responsabilidades da vida, as dores do mundo e os riscos de morte. O pai, portanto, serve como uma muralha em cuja sombra o filho floresce”.
Mas se o neurótico usa este Nome-do-Pai para se identificar e também para tornar possível o seu encontro com a satisfação; mas se o neurótico acredita muito neste Nome ao ponto de fazer grande esforço para sustentá-lo como um Nome potente; mas se o neurótico usa este Nome para responder a si o que quer o Outro e poder seguindo a vida nesta crença, sabemos que hora ou outra, este Nome vai padecer, vai falhar, não vai responder com garantias àquilo que não tem medida, nem nunca terá, que não tem governo, nem nunca terá, mas que pelo menos podemos dar um nome: Real.
Quanto à muralha, “com o crescimento da criança, reduz sua altura e sua espessura até o momento em que se pode perceber, por intermédio de suas falhas, frestas e rachaduras, que não é, nem foi, tão resistente e segura quanto se imaginou”[7].
A angústia surge então como uma das possibilidades de resposta ante ao fracasso deste Nome. Deste nome que vez ou outra se torna muito pequenino e impotente. O sintoma também é prova da falha do Nome. O sintoma também pode ser a prova do esforço do neurótico para dar consistência ao Outro. E se o Nome-do-Pai está em decadência na cultura é por pura repetição do que acontece no nível do sujeito, com o crescimento da criança. Talvez tenhamos crescido no nível da cultura, ao ponto de percebermos a falência do pai.
Sabemos que um sujeito até pode se virar bem com seu sintoma, vez outra sofrendo, com angústia, quem sabe... Pode ser que um sujeito não queira nunca abrir mão de seu sintoma, e de seu esforço em dar consistência ao Outro. Felizmente também sabemos que para àqueles que sofrem de um mal a mais (Plus de mal), e que por contingência da vida puderam encontrar um analista, há o que se fazer.
E qual é a operação efetuada em uma análise no que diz respeito a esta nomeação paterna? Seria função de uma análise restaurar a imagem do velho pai? Seria função de uma análise fazer com que o sujeito desconsidere o pai?
Lacan, no Seminário 23[8], traz a expressão l´homme pours-père. Em um jogo com a palavra pours-père encontra-se uma ambigüidade: o pai faz o homem prosperar, e o homem é a finalidade do pai. Somado a estas duas, outro sentido homofônico: pourrir en espérant, que significa “apodrecer esperando”. Assim, na mesma medida em que se pode prosperar a partir do pai, também é possível apodrecer esperando que este Nome continue dando sentido, continue sendo equivalente ao demandado. Que o pai tenha sido útil ao ponto de interpor-se entre a criança e o desejo da mãe; útil em preencher um pouco o buraco sofrido pela extração de um objeto, não permite que se possa esperar que seja potente para sempre, ao preço de se apodrecer esperando.
Sérgio de Campos com sua bela metáfora nos auxilia: “Reduzido a um semblante, o pai faz com que o filho passe a enxergar o mundo por cima de um frágil biombo de papel, sendo esse, via de regra, um momento de metamorfose vivido como luto, em que ele prescinde do muro (do pai) depois de ter se servido dele”[9]. Nem restaurar a imagem paterna, nem desconsiderá-la, mas fazer um nome próprio deste que lhe foi dado como herança. Formular uma pére-version, agora com letra minúscula, sem o peso do Ideal, e também precedida por artigo indefinido (uma) já que pode também ser outra.


[1] GALEANO, Eduardo. A função da arte 1. In: O livro dos abraços. Porto Alegre: L&PM, 2000, p. 15.

[2] LAURENT. Éric. Um novo amor pelo pai. In: Opção Lacaniana, n. 46. São Paulo, 2007, p. 20-29.
[3] VIEIRA, Marcus André. Retrato falado de um totem sem tabu (ou a hipermodernidade sertaneja). In: Latusa, n. 11. Rio de Janeiro, 2006, p. 13.

[4] SOLANO-SUAREZ, Esthela. Gozo. In: Scilicet dos Nomes do Pai. 2006, p. 67.

[5] GOROSTIZA. Leonardo. Autoridade. In: Scilicet dos Nomes do Pai. 2006, p. 25

[6] CAMPOS, Sérgio de. A outilidade do pai. In: Curinga, n. 23, Nov de 2006. EBP-MG, p.74.

[7] Idem.
[8] Conforme referência de Sérgio de Campos. Op. cit.
[9] Idem.