quinta-feira, 20 de novembro de 2008

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Sentir nada, sentir tudo

Maria vai ao postinho de saúde ver o médico e diz que nos últimos tempos está um pouco cansada, desanimada. Não sendo de se estranhar, leva consigo a receita de Fluoxetina; João diz que o sono não anda muito profundo e que ainda antes do galo cantar já não cabe mais na cama: leva umas duas miligramas de Rivotril. Ana conta que a Virgem Maria apareceu para ela, dizendo para não se preocupar com o filho, que este está sob os cuidados de si – lá vai um haldolzinho, mas só até ficar pronto o processo para o Estado fornecer o Zyprexa, que isto sim é que é moderno. Ah, Rogério fala que dia está meio deprimido, dia dá uma vontade enorme de agradecer aos céus pelo sol, pelo mar, pela mulher, pela vida. Advinhem? Um Carbolitium, sim senhor!
O tom de trivialidade e o diagnóstico simplificado à banalidade que se pode ler acima, seriam sem nenhuma relevância se não refletissem exatamente o que se passa em muitos lugares oferecidos para tratamento do mal-estar psíquico. Entre profissionais da saúde pública, repete-se, de maneira jocosa, que mais vantagem seria diluir na caixa d’água da cidade boas doses de fluoxetina e rivotril. Assim, se poderia tratar em longa escala este povo que em quase unanimidade se diz doente.
E que gente é essa, os que seriam supostamente beneficiados por fluoxetina e rivotril na torneira de sua casa? Não são os que tão distantes estão da tão sonhada felicidade? Daquele ponto de equilíbrio em que tudo, tudo deve funcionar bem, como os normais bem devem de ser? Quando é que vão se adequar à norma? A esta nova e moderna regra pela qual todo mundo tem que ser feliz?
É, neste momento de novos imperativos, felicidade é regra maior.
Poderíamos perguntar: – Mas como assim felicidade? O que é a tal da felicidade? Onde se encontra? Alguém já a viu por aí? Vende-se em supermercado?
Ao que alguma voz poderia responder: – Sim, vende-se sim! Em supermercado, pela internet, no morro, nas butiques de luxo, em vários lugares, mas principalmente na farmácia. E tem dois tipos básicos de felicidade, dá para escolher: podemos ter a felicidade de não sentir nada ou a felicidade de sentir tudo. Aí, fica ao gosto do freguês.
Esta mesma voz prosseguiria: – Ora, ora, por que sentir dor, tristeza, luto, se com um remedinho tudo se alivia? Sim, tristeza é doença em nosso tempo. E não querer aliviar é coisa de gente estranha, que se chama de corajosa, de sensível, de politizada, até de ética, mas na verdade mesmo, é esquisita. Masoquistas! Isto é o que são. Tanta indústria pesquisando o que alivia a dor de ter nascido e uns aí são do contra. É uma felicidade não sentir nada.
Nosso diálogo continuaria:
– Mas é possível mesmo não sentir nada, dor alguma?
– Sim, sim, é só aumentar a dose de vez enquanto, ou mudar o fabricante, e também, o negócio está sempre evoluindo, sempre coisa nova na prateleira.
– Mas é assim mesmo? E os tais efeitos colaterais? É tão fácil mesmo ser feliz?
– Efeitos colaterais? É... a maioria engorda um pouco, mas tudo bem, é só usar uma pílula de outra cor que emagrece. Bem, a cabeça também fica um tanto devagar, mas já dizem uns velhos sábios, quem pensa muito acaba enlouquecendo.
– E funciona bem para todo mundo?
– Ah, todo mundo, todo mundo, não. Uns aí não têm jeito, é o psicológico que atrapalha, aí paciência, nem Jesus agradou todo mundo.
A debilidade mental em troca de não sentir nada é uma versão da felicidade contemporânea. A indústria (ciência e mercado aliado) oferece uma ampla variedade de silenciadores do que é mais íntimo, que dizem, é o que faz sofrer. Amputa-se a dor e vai o sujeito junto. Algum preço tem que se pagar...
Há também uma outra felicidade, que é a de sentir tudo. Carpem diem! “Eu não sei, a cada dia, o que vou amar no dia seguinte”, é o que já dizia Saint-Preux, o protagonista da novela A nova Heloísa, de Rousseau, numa carta a sua noiva, quando vai para a cidade e descobre os novos tempos.
E já que tudo que é sólido se desmancha no ar[1], o hedonismo se marca como uma nova política do viver.
Este é o mundo das múltiplas possibilidades, da queda da perversão, já que quase tudo é permitido. O que vale é a experiência. E se oferta uma aparentemente mais incrível que a outra.
Sentir tudo é gozar, gozar, gozar, a marca feroz de um a pulsão de morte que se repete infinitamente numa avalanche de confrontos diretos com os objetos do tipo mais-de-gozar, que segundo já sabemos, ocupa um lugar de zênite em nosso tempo.
Já se foi o tempo dos projetos para o futuro, dos ideais, da preocupação mínima com “o que o outro vai pensar?”. E se esse outrinho não faz efeito algum, o Outro, aquele que, já fomos avisados, é barrado, desceu na escala de importância. O a passou a perna no A.
Neste último seminário de Orientação Lacaniana, Miller[2] nos faz recordar um discurso do profeta Zaratustra muito bonito e ilustrativo de nossas atuais preocupações:

“É tempo que o homem tenha um objetivo.
É tempo que o homem cultive o germe da sua mais elevada esperança.
O seu solo é ainda bastante rico, mas será pobre, e nele já não poderá medrar nenhuma árvore alta.
Ai, aproxima-se o tempo em que o homem já não lançará por sobre o homem a seta do seu ardente desejo e em que as cordas do seu arco já não poderão vibrar.
Eu vô-lo digo: é preciso ter um caos dentro de si para dar à luz uma estrela cintilante.
Eu vô-lo digo: tendes ainda um caos dentro de vós.
Ai! Aproxima-se o tempo em que o homem já não dará a luz às estrelas; aproxima-se o tempo do mais desprezível dos homens, do que já não pode desprezar a si mesmo.
Olhai! Eu vos mostro o último homem.
Que vem ser isso de amor, de criação, de ardente desejo, de estrela? – pergunta o último homem, revirando os olhos.
A terra tornar-se-á então menor, e sobre ela andará aos pulos o último homem, que tudo apouca. A sua raça é indestrutível como a da pulga: o último homem é o que vive mais tempo.
‘Descobrimos o que é a felicidade’ – dizem os últimos homens, e piscam os olhos.”[3]

É da felicidade do tudo ou nada de que se trata a descoberta deste último homem descrito por Nietzsche. Desta que calando o caos de cada um, cala ao mesmo tempo o desejo, a possibilidade de amor e de criação.
E tem que ser assim radical: tudo ou nada? Não, há outras possibilidades. Uma delas é, nos termos lacanianos, o não-todo. Não-toda felicidade também é possível. Apesar de que o tempo corre de maneira desenfreada, atropelando os sujeitos com as promessas de totalidade e de gozo sem restrição, ainda se pode, de forma não-toda, marcar uma profunda diferença.
Sim, há outra possibilidade, aquela na qual o objeto muda seu estatuto. Deixa de ser o que se estampa ante aos olhos e aos outros sentidos como uma promessa da satisfação total e imediata, através dos outdoors, dos folhetins, dos receituários, dos experimentos, dos manuais científicos... Passa a ser outro, a própria fratura íntima do ser falante, que o instala no desejo, que lhe causa o desejo. Esta outra vertente do objeto possibilita a felicidade, não aquela das garantias totais, mas a que, sendo um sujeito, é possível.
“Aquellos que no retrocederem no les esta prometida la felicidad, pero si la alegria de hacer encontrado um truco para vivir mejor. Un saber a cerca de lo que causa el deseo nos otorga la posibilidad de eligir y de asumir sus efectos con todos sus consequencias.[1]

[1] Vilma Cocoz. Notas sobre la actitud del psicoanalisis. In: : El libro Blanco del psicoanalisis: clínica y política. Barcelona: RBA Libros S.A. 2006, p. 105.
[1] Berman, Marshal. Tudo que é sólido se desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
[2] Miller, Jacques-Alain. Sétima aula do curso Orientação Lacaniana – 2007/2008. 23/01/2008.
[3] Nietzsche, Friedrich. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Martins Claret, 2005, p. 28-29.

sábado, 13 de setembro de 2008

O cartel e a formação do analista

Quando pensamos em uma escola, em geral, nos vem à cabeça um lugar onde passamos para aprender determinadas coisas que farão alguma diferença em nossa vida. Esta escola nos forma para o depois. Ela é um lugar de passagem, lugar que pressupõe uma verdade, na qual o que irá se modificar é a pessoa que a ela se submeter.
Mas, quando se trata de psicanálise, não poderíamos pensar em uma escola deste molde. Uma escola que forma para depois. Uma escola em que se pressupõe uma verdade, na qual os sujeitos podem se formar. Se numa escola psicanalítica, as pessoas estão em constante aprendizagem, não é para depois. Espera-se, nesta, que os sujeitos não se formem, ou não se sintam formados, a ponto de abandoná-la, como fazemos com as outras escolas. A formação em uma escola psicanalítica não tem fim, nunca chega à hora de se diplomar.
Mas por quê? Primeiro, porque já sabemos que a formação do analista nunca chega ao final. A formação é infinita. E segundo, porque a verdade, geralmente digno objeto de uma escola, não é, ou não pode ser, total numa escola psicanalítica. Esta escola nunca sabe o todo, nunca tem o saber absoluto. Mas apesar de saber que nunca poderá oferecer uma verdade totalizante, não cessa de se pôr à busca de mais saber. Porque quem, ou melhor, o que está em formação nesta escola, não são apenas seus membros ou quem ao redor dela se situa, mas sim a própria psicanálise. Se existe um aluno nesta escola que nunca se forma é a própria psicanálise. E é ela para a qual todas as atenções se dirigem, é para a formação dela que todos trabalham. É para que ela possa aprender a ser um digno instrumento para olhar e tratar o mal-estar da época presente é que se trabalha sem cessar.
Esta é a escola de psicanálise proposta por Lacan. Uma escola na qual o importante é o trabalho que cada um de seus participantes possa oferecer. Tendo o trabalho como centro da atenção dessa escola, Lacan, em 1964, cria o dispositivo do cartel. “Órgão de base da Escola”, “sede do trabalho da Escola”, como Lacan o nomeou, o cartel vai na contramão das estruturas burocráticas da instituição. É a porta sempre aberta da escola lacaniana. Entra quem quer trabalhar, aprender, começar ou continuar sua formação em psicanálise, ou apenas satisfazer alguma curiosidade temática.
Mas e o que é isto, o cartel? Esta palavra que em nosso vocabulário tem uma conotação ilícita, na psicanálise tem um significado específico.
O cartel se trata de um pequeno grupo de pessoas que se agrupam para estudar, um dos pilares da formação do analista (sabemos que Freud apontou um tripé necessário à realização no que diz respeito à formação do analista: estudo, análise e supervisão). Lacan sugeriu alguns pressupostos para o trabalho deste pequeno grupo: quatro pessoas mais uma se reúnem por um ou dois anos em torno de um tema de estudo. O mais um é não é apenas o cinco, tem a função de velar pelos efeitos internos do cartel, provocar sua elaboração, e também velar para que os efeitos de grupo, em geral causados pelo imaginário, não atrapalhem o seu andamento. Ele não é professor, nem coordenador. Pode-se dizer que é um líder, mais um líder debilitado. Ele é mais um na medida em que é mais um interessado no tema em questão. É esperado deste pequeno grupo chamado cartel que cada um dos membros possa chegar a um produto próprio. E no final, que estas pessoas possam apresentar suas produções individuais à comunidade analítica e em alguma medida causar-lhe um movimento. Ao final deste período de estudos e desta apresentação das produções à comunidade analítica, o grupo se dissolve. Seus membros agora novamente solitários podem formar outros cartéis a partir de novos temas de interesses com outros interessados no mesmo tema.
Há, sobretudo, neste grupo, um caráter anti-didático. Não há um mestre de prestígio que dite um ensino e alunos que o amem por seu saber. A cada um cabe a implicação de autorizar-se a pensar por conta própria. “Há aí a aposta de que entre a possível elaboração coletiva e a particularidade da enunciação de cada um, se avance um pouquinho no saber à custa da ignorância”.
Neste sentido, o cartel tem característica provocadora. Ele é a certeza que sempre o novo será oferecido. Ele é a possibilidade mais viva de fazer com que as verdades não se cristalizem, de fazer com que o estudo e a reflexão sobre a psicanálise estejam em constante movimento.
Assim, o dispositivo do cartel trás para a psicanálise uma novidade. O cartel trás consigo uma máxima, que é o fato de que o “saber que a psicanálise produz não está pronto, não está preparado, não se trata de um saber que é preciso aprender, não se trata de descobri-lo, trata-se de inventá-lo”.
Todas as pessoas que estudam psicanálise, sabem que a psicanálise tem uma teoria muito viva. Se os críticos dizem que a psicanálise é ultrapassada, que Freud a inventou num outro tempo, dizem isto certamente baseados na ignorância. Sabemos que o próprio Freud reinventou a psicanálise tantas vezes quanto os fatos lhe foram impostos. Freud não se deixava levar pelo narcisismo na medida em que mostrando a ignorância e revisando suas próprias idéias levava a psicanálise à atualidade por ele vivida. Lacan assim também o fez, reiventou a psicanálise para que pudesse ser um instrumento para tratar o mal-estar de sua época. É a isto que somos convocados: a todos os dias, diante dos novos pacientes, reinventarmos a psicanálise. Não com as garantias que equivocadamente pensamos encontrar no discurso do mestre, mas com a vivacidade de saber fazer com o que nos é apresentado.
O cartel é este lugar da formulação de novos saberes, aonde a ignorância é muito bem vinda, já que não é marcada pelos ranços das verdades convictas. Basta ter o desejo de saber, ainda que pequeno e não esperar pela resposta do mestre.
Poder abrir mão do mestre e também de ser o mestre é a convocação que se faz diante desta aposta de formulação de saber. E este não é um dos achados que alguém em sua formação como analista deva se deparar? Penso que esta é uma questão que torna o cartel um elemento indispensável na formação de um analista.
A respeito do cartel pode-se dizer que é um bom modo de não se estar sozinho, nesta função que nos impõe tanta solidão, que é a prática analítica. Sabemos que no trabalho analítico o analista está só, e que assim é preciso. Mas fora do consultório não se precisa estar só. Não é bom que o analista esteja só, mais ainda, é impossível!