sábado, 13 de setembro de 2008

O cartel e a formação do analista

Quando pensamos em uma escola, em geral, nos vem à cabeça um lugar onde passamos para aprender determinadas coisas que farão alguma diferença em nossa vida. Esta escola nos forma para o depois. Ela é um lugar de passagem, lugar que pressupõe uma verdade, na qual o que irá se modificar é a pessoa que a ela se submeter.
Mas, quando se trata de psicanálise, não poderíamos pensar em uma escola deste molde. Uma escola que forma para depois. Uma escola em que se pressupõe uma verdade, na qual os sujeitos podem se formar. Se numa escola psicanalítica, as pessoas estão em constante aprendizagem, não é para depois. Espera-se, nesta, que os sujeitos não se formem, ou não se sintam formados, a ponto de abandoná-la, como fazemos com as outras escolas. A formação em uma escola psicanalítica não tem fim, nunca chega à hora de se diplomar.
Mas por quê? Primeiro, porque já sabemos que a formação do analista nunca chega ao final. A formação é infinita. E segundo, porque a verdade, geralmente digno objeto de uma escola, não é, ou não pode ser, total numa escola psicanalítica. Esta escola nunca sabe o todo, nunca tem o saber absoluto. Mas apesar de saber que nunca poderá oferecer uma verdade totalizante, não cessa de se pôr à busca de mais saber. Porque quem, ou melhor, o que está em formação nesta escola, não são apenas seus membros ou quem ao redor dela se situa, mas sim a própria psicanálise. Se existe um aluno nesta escola que nunca se forma é a própria psicanálise. E é ela para a qual todas as atenções se dirigem, é para a formação dela que todos trabalham. É para que ela possa aprender a ser um digno instrumento para olhar e tratar o mal-estar da época presente é que se trabalha sem cessar.
Esta é a escola de psicanálise proposta por Lacan. Uma escola na qual o importante é o trabalho que cada um de seus participantes possa oferecer. Tendo o trabalho como centro da atenção dessa escola, Lacan, em 1964, cria o dispositivo do cartel. “Órgão de base da Escola”, “sede do trabalho da Escola”, como Lacan o nomeou, o cartel vai na contramão das estruturas burocráticas da instituição. É a porta sempre aberta da escola lacaniana. Entra quem quer trabalhar, aprender, começar ou continuar sua formação em psicanálise, ou apenas satisfazer alguma curiosidade temática.
Mas e o que é isto, o cartel? Esta palavra que em nosso vocabulário tem uma conotação ilícita, na psicanálise tem um significado específico.
O cartel se trata de um pequeno grupo de pessoas que se agrupam para estudar, um dos pilares da formação do analista (sabemos que Freud apontou um tripé necessário à realização no que diz respeito à formação do analista: estudo, análise e supervisão). Lacan sugeriu alguns pressupostos para o trabalho deste pequeno grupo: quatro pessoas mais uma se reúnem por um ou dois anos em torno de um tema de estudo. O mais um é não é apenas o cinco, tem a função de velar pelos efeitos internos do cartel, provocar sua elaboração, e também velar para que os efeitos de grupo, em geral causados pelo imaginário, não atrapalhem o seu andamento. Ele não é professor, nem coordenador. Pode-se dizer que é um líder, mais um líder debilitado. Ele é mais um na medida em que é mais um interessado no tema em questão. É esperado deste pequeno grupo chamado cartel que cada um dos membros possa chegar a um produto próprio. E no final, que estas pessoas possam apresentar suas produções individuais à comunidade analítica e em alguma medida causar-lhe um movimento. Ao final deste período de estudos e desta apresentação das produções à comunidade analítica, o grupo se dissolve. Seus membros agora novamente solitários podem formar outros cartéis a partir de novos temas de interesses com outros interessados no mesmo tema.
Há, sobretudo, neste grupo, um caráter anti-didático. Não há um mestre de prestígio que dite um ensino e alunos que o amem por seu saber. A cada um cabe a implicação de autorizar-se a pensar por conta própria. “Há aí a aposta de que entre a possível elaboração coletiva e a particularidade da enunciação de cada um, se avance um pouquinho no saber à custa da ignorância”.
Neste sentido, o cartel tem característica provocadora. Ele é a certeza que sempre o novo será oferecido. Ele é a possibilidade mais viva de fazer com que as verdades não se cristalizem, de fazer com que o estudo e a reflexão sobre a psicanálise estejam em constante movimento.
Assim, o dispositivo do cartel trás para a psicanálise uma novidade. O cartel trás consigo uma máxima, que é o fato de que o “saber que a psicanálise produz não está pronto, não está preparado, não se trata de um saber que é preciso aprender, não se trata de descobri-lo, trata-se de inventá-lo”.
Todas as pessoas que estudam psicanálise, sabem que a psicanálise tem uma teoria muito viva. Se os críticos dizem que a psicanálise é ultrapassada, que Freud a inventou num outro tempo, dizem isto certamente baseados na ignorância. Sabemos que o próprio Freud reinventou a psicanálise tantas vezes quanto os fatos lhe foram impostos. Freud não se deixava levar pelo narcisismo na medida em que mostrando a ignorância e revisando suas próprias idéias levava a psicanálise à atualidade por ele vivida. Lacan assim também o fez, reiventou a psicanálise para que pudesse ser um instrumento para tratar o mal-estar de sua época. É a isto que somos convocados: a todos os dias, diante dos novos pacientes, reinventarmos a psicanálise. Não com as garantias que equivocadamente pensamos encontrar no discurso do mestre, mas com a vivacidade de saber fazer com o que nos é apresentado.
O cartel é este lugar da formulação de novos saberes, aonde a ignorância é muito bem vinda, já que não é marcada pelos ranços das verdades convictas. Basta ter o desejo de saber, ainda que pequeno e não esperar pela resposta do mestre.
Poder abrir mão do mestre e também de ser o mestre é a convocação que se faz diante desta aposta de formulação de saber. E este não é um dos achados que alguém em sua formação como analista deva se deparar? Penso que esta é uma questão que torna o cartel um elemento indispensável na formação de um analista.
A respeito do cartel pode-se dizer que é um bom modo de não se estar sozinho, nesta função que nos impõe tanta solidão, que é a prática analítica. Sabemos que no trabalho analítico o analista está só, e que assim é preciso. Mas fora do consultório não se precisa estar só. Não é bom que o analista esteja só, mais ainda, é impossível!