quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Atravessamento da angústia e satisfação

“a ausência de sentido é perfeitamente compatível com a coerência” M. P. S. Leite

Diante do enigma primeiro a respeito do desejo do Outro, ou, como nomeamos, Desejo da Mãe, a criança constrói sua resposta, arruma seu sentido: o que será denominado Nome do Pai. A metáfora paterna daquilo que surgiu como o que causou a primeira fratura narcísica no ser, apazigua o sujeito com a descoberta da fórmula que supostamente o restauraria ao lugar do ideal. O Nome do Pai vem então como o substituto daquilo que tirou da criança seu lugar da completude com o outro. Diante do enigma: “Che vuoi?” – “Que queres?”, o sujeito articula uma resposta. O que falta ao Outro o sujeito o nomeia: é o Nome do Pai.

Porém, esta nomeação que dirige o sujeito, fundamenta seu ser na medida em que lhe confere uma identificação, mostra-se como falha. Em algum momento, este nome que aparecia como garantia e verdade, torna-se inconsistente.

Quando este sentido nomeado não se sustenta diante dos fatos, do Real, vemos o aparecimento da angústia. O “Che voi?” retorna com o aspecto de puro estranho, sem respostas e sem sentido. “A angústia (...) está ligada a tudo o que pode aparecer no lugar (-φ) (...) Esse fenômeno é o da Unheimlichkeit.”[1]

Dizemos que a angústia é um afeto que não engana. O que quer dizer que é o confronto direto do sujeito com o Real, sem velamentos. É o confronto direto com este lugar em que nada falta, que aparece como Coisa, grandiosa, desmedida, sem contornos, “certeza assustadora”[2]. Vazio consistente, nada, puro sem-sentido, devorador do sujeito é este objeto que na angústia aparece como estranho.

Qual é o tratamento para a angústia? Em psicanálise falamos de um atravessamento da angústia. Do que se trata atravessar a angústia? Atravessamento da angústia seria o caminho que o sujeito percorre na sua relação com o objeto, objeto como estranho, para o objeto como causa de desejo? O objeto estranho é o mesmo objeto causa de desejo? Em que se diferenciam? Como se pode fazer do objeto que aparece como estranho o objeto que causa o desejo? Estas são as questões que norteiam minha pesquisa neste cartel.

Iniciemos pelo tema do objeto a. “O objeto a não é um significante...”[3] “O objeto a não é um ser, ele é um vazio. O que chamamos objeto a é a inadequação da demanda.”[4] Isto é, o que da demanda não diz respeito ao desejo. Do que o Nome do Pai não corresponde ao Desejo da Mãe. É esta sobra, este vácuo existente, este excesso não nomeável. Este buraco, este lugar onde um não corresponde ao outro é o objeto a. Por isto ele não tem nome, por isso não há um objeto a como significante. a é “o objeto que funciona como resto da dialética do sujeito com o Outro”[5]

Se o objeto a tivesse uma existência significante, somado ao Nome do Pai restauraria o sujeito como não barrado, como eu ideal. O simbólico seria sem furo, corresponderia ao Real. Seria o fim da castração. Seria então a mortificação do desejo. O objeto a é causa de desejo porque não é significante, porque é furo, nada, vazio.

Furo, nada, vazio, ausência da falta. Quando aparece ao sujeito, quando a fantasia e os nomes que serviam para apaziguar a relação com o Real não se sustentam produz no sujeito o encontro com o que é sem palavras. Angústia é o nome que podemos dar para isto. Aqui este objeto de puro nada aparece ao sujeito como estranho. No sentido freudiano, o que há de mais estranho e mais familiar. Angústia constituída que paralisa o sujeito, que diante do sem limites; da ausência da falta, do furo onde se insere o sujeito, não lhe dá saída, não lhe dá palavras.

Porém Lacan nos adverte que a angústia é o caminho que “revivifica toda a dialética do desejo, (...) é o único que nos permite introduzir uma nova clareza quanto à função do objeto em relação ao desejo”[6].

O que pode tirar o sujeito da angústia e levá-lo a satisfação? Pensamos em duas saídas para angústia:

1) satisfação pelo tamponamento da falta, pela via dos objetos suplentes (mais-de-gozar).

No capitalismo os bens de consumo e as prestações de serviço se propõem a estabelecer a satisfação do indivíduo. Através das múltiplas possibilidades do uso de substâncias tóxicas, das ilícitas às da farmácia, se oferece a possibilidade de o sujeito sair do que lhe faz sofrer. No consumo dos objetos do mercado se encontra incessantemente objetos que obturam o que falta. Também podemos falar no encontro com o objeto amoroso. São encontros possíveis com que supostamente restauraria no sujeito um estado de completude e garantia. Dizemos que esta é a satisfação narcísica pela via da completude pelo encontro com o objeto. Porém, este objeto que promete o tamponamento do vazio que aparece como estranho ao sujeito, joga-lhe no abismo sem fim do mais e mais objetos, das outras e outras drogas e devastamento no campo amoroso. E assim, ao invés de apaziguar a dor, o que é possível por alguns instantes, abre ainda mais este furo, corrói a fratura íntima, e lança o sujeito não só no estado anterior da angústia, mas também no estado de impotência. Se dizemos que a angústia é um afeto que não engana, podemos dizer que a satisfação possibilitada por estas vias é um afeto que certamente engana.

2) satisfação pelo consentimento do furo e reconfiguração do objeto para causa de desejo.

Na psicanálise lacaniana, a idéia de fim de análise se remete à satisfação do sujeito. Logicamente não se refere a mesma satisfação que impera no discurso capitalista.

Lacan no texto prefácio do Seminário XI, diz que no final da análise há satisfação. “o único término da análise é a satisfação que marca o final da análise”[7]. A satisfação daquele que foi analisante. De que satisfação se trata? A pulsão se satisfaz por inteiro no fim de uma análise? Ou o sujeito se satisfaz com a parcialidade da satisfação da pulsão? Ou já que a pulsão sempre se satisfaz, qual é a diferença em relação à satisfação obtida no fim de uma análise?

Uma análise se concebe na esperança ilusória de cercar o Real com o Simbólico. E com o Simbólico se faz “florir o imaginário”[8]. O desejo do analista, com sua função simbólica faz surgir o inconsciente transferencial. E como Outro que se corporifica, faz acontecer a questão: O que quer o analista? Isto lança o sujeito ao querer saber, à construção de saber, à busca da verdade última que diga sobre seu ser no mundo. “Numa análise trata-se de reconduzir o sujeito aos elementos absolutos de sua existência contingente”[9]. Neste sentido, uma análise é uma experiência que consiste em construir uma ficção. Porém, em contrapartida, também é uma experiência que consiste em desfazer essa ficção. “A psicanálise não é o triunfo da ficção. Nela a ficção é posta à prova de sua impotência em resolver a opacidade do Real”[10]. Do aparecimento da verdade como mentirosa, acontece o rearranjo do sujeito ante suas identificações, queda do Ideal – esvaziamento superegóico. Em consequência, há um alargamento das possibilidades ante a contingência. É possível, assim, obter a satisfação pelo consentimento com a verdade como mentirosa. Porém, esta satisfação residiria em puro cinismo se não houvesse a possibilidade de cercar no nível do sujeito o que lhe aparece como singular.

No esvaziamento da cadeia significante, sobra o “initium subjetivo (...) só há aparecimento do sujeito como tal a partir da introdução primária de um significante, e do significante mais simples, aquele que é chamado de traço unário”[11].

O traço unário como anterior ao sujeito é o que possibilitaria nomear a borda do objeto que sem ela aparece como estranho e desmedido? A hipótese aqui levantada é que o objeto como causa é aquele em que o sujeito pode localizar a borda que contorna o nada, o vazio do objeto. A borda possibilita a imaginarização e também a simbolização deste objeto, e assim, amortiza o caráter aterrorizante do completo sem-sentido, ilimitado. A nomeação do objeto é a nomeação do que faz borda, já que o objeto mesmo não é significante. Assim, esta nomeação é o que possibilitaria a passagem do estranho para causa.

Na medida em que com o percurso de uma análise o sujeito depara-se com esta satisfação em relação ao não-sabido, ao sem-sentido, à noção de impossível, não poderíamos dizer que a satisfação que resulta do fim de uma análise é também, como a angústia, um afeto que não engana? Isto é, se a angústia é um afeto que não engana porque coloca o Sujeito em relação direta com o objeto (como estranho), esta satisfação obtida através de uma análise, a qual acontece pelo encontro do Sujeito com o objeto (como causa) não seria também um afeto que não engana?



[1] Lacan, J. O Seminário: livro 10 – A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 57.

[2] Lacan, J. O Seminário: livro 10 – A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 88.

[3] Miller, J.A. Orientação Lacaniana – Coisas de fineza em psicanálise. Aula XV, de 28 de abril de 2009.

[4] Miller, J.A. Orientação Lacaniana – Coisas de fineza em psicanálise. Aula XVI, de 06 de maio de 2009.

[5] Lacan, J. O Seminário: livro 10 – A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 252.

[6] Idem.

[7] Miller, J.A. Orientação Lacaniana – Coisas de fineza em psicanálise. Aula XV, de 28 de abril de 2009

[8] Idem. Aula VII, de 14 de janeiro de 2009.

[9] Idem. Aula V, de 10 de dezembro de 2008.

[10] Idem. Aula VIII, de 21 de janeiro de 2009.

[11] Lacan. Op. cit., p. 31.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Elogio ao Colégio Dehon

Quando estamos escolhendo a escola de nossos filhos, não é raro que sintamos a responsabilidade em fazer algo essencial para a vida deles; algo que deixará marcas em sua forma de ser. A escola é uma grande parceira dos pais no que concerne à educação da criança. Quando escolhemos, fazemos uma aposta, e o futuro nos dirá o quanto fomos contemplados.

Depois de muito pesquisar sobre as escolas de nossa cidade, apostei no Colégio Dehon, inicialmente pela serenidade e amabilidade (sim, as duas coisas podem estar juntas) com que fomos recebidos, pela indicação de amigos e também porque no dia em que conheceu a escola, meu filho demonstrou muita intimidade com o espaço, daquelas que sentimos quando já estamos há anos no lugar.

Escolha tomada, alívio sentido. Agora vamos ver o que acontece.

Já sabia, pela reunião em que fui conhecer a escola, e pelas histórias contadas por amigos com filhos matriculados lá, que o Colégio trabalha com “projetos”. Palavra da moda no meio pedagógico. Hoje é chic e moderno dizer que uma escola trabalha com projetos. Porém mais do que chic e moderno, trabalhar com projetos numa escola pode ser uma forma de mostrar a consistência de uma ideologia, e trabalhar honestamente para implantá-la na vida das pessoas que estão ao seu redor.

O Colégio Dehon trabalha com projetos e o de 2009, o ano em que meu filho foi matriculado nesta escola, recebe o nome de “A beleza de olhar o mundo”.

As esclarecedoras e detalhadas palavras das pessoas responsáveis por tal projeto, me fizeram concluir que A beleza de olhar o mundo é um saber-fazer com o mundo em que vivemos; é estar com os pés na realidade de nosso tempo e poder fazer um bom uso disto.

E de que mundo se trata, este dos nossos tempos? É o mundo da queda dos ideais, das autoridades, das garantias. É o mundo das experiências, das múltiplas possibilidades. É o mundo da fugacidade das verdades, dos valores e também das sensações e das escolhas. O que ontem era, hoje já não é mais.

Muitas vezes tendemos a olhar o mundo de hoje com um arrepio na espinha, um certo horror, um sentimento de calamidade. Tendemos a olhar para este mundo com o ar fóbico que em geral dirigimos para aquilo que não conhecemos.

Sim, são os fatos: os ideais estão em absoluta decadência; não se acredita mais na autoridade; as certezas são muito provisórias. Estes elementos eram até então aqueles que subsidiaram a educação das crianças: os ideais, a convicção e a fé na autoridade. No lugar disto que se foi, vemos crescer no solo de nosso tempo, junto com o desprezo à autoridade, uma voracidade enlouquecedora por experimentar o mundo. Experimentar o mundo pode querer dizer consumir, abocanhar o mundo. E isso tem deixados os novos personagens deste mundo obesos de experiências, alucinados de experiências, endividados de experiências e até mortos de experiências. Isto é o que nos deixa fóbicos diante deste novo tempo. Fóbicos diante do fato que nossos filhos crescem neste novo tempo em que os objetos de consumo estão no topo da importância em nossas vidas.

Estes objetos que são sempre obsoletos, ultrapassados, e que fazem com que vivamos muito mais na expectativa da nova experiência prometida, do que a que se pode sentir diante do que temos. Sim, o celular, o carro, a roupa que ainda não se tem, são sempre melhores, mais adequados. Sim, a droga que se experimenta na primeira vez, quando repetida não traz mais a mesma sensação, é preciso aumentar a dose.

O mundo em que vivemos é este, não é nenhum outro. O que passou ficou para trás. Se vivermos na nostalgia de outros tempos, ou se quisermos a todo o custo restaurar a antiga ordem, os antigos ideais, no mínimo ficaremos ainda mais distantes destes que nascem e que crescem neste mundo de hoje. Neste mundo das sensações, das experiências e dos objetos.

Podemos nos perguntar (e é justamente poder fazer isto que pode nos salvar do que nos horroriza nos tempos atuais): Como vamos viver neste novo mundo? Como vamos conduzir nossas vidas entre estes imperativos das sensações, das experiências e dos objetos? Temos algumas opções. Sempre as temos. Podemos querer abocanhar o mundo inteiro até que expludamos de tantas informações, comida, drogas, novas formas de se viver, sempre na esperança de uma próxima experiência que nos tire da tão humana insatisfação. Ou podemos olhar a beleza do mundo e valorizar a sensação das experiências que temos, sem a ilusão de que outros mais e mais objetos nos darão alguma garantia de plenitude; podemos nos entusiasmar com o que temos nas mãos, com os objetos que nos cercam, com os outros que nos cercam se não deixarmos nos enganar pela fugacidade do consumo e das experiências. Olhar a beleza do mundo também é ter relação com as sensações, com as experiências e com os objetos, só que de forma que nos permita viver mais tranquilamente, aproveitando, de fato, melhor a vida.

O alívio da aposta inicial me dá agora o entusiasmo e a alegria da convicção de estar compartilhando a educação do meu filho com quem está fazendo um bom uso do que temos em nosso tempo. Agradecimentos e elogios à equipe do Colégio Dehon!