terça-feira, 28 de outubro de 2003

O amor

Não é difícil percebermos que o tema amor tem uma enorme prevalência sobre o nosso imaginário. Em nossa cultura, associamos a idéia de uma vida feliz a um grande e forte relacionamento amoroso; imaginamos que sem isso é impossível alcançar a felicidade. Existe até uma música de Tom Jobim que diz “Fundamental é mesmo o amor, é impossível ser feliz sozinho”.
É com freqüência que atribuímos ao amor o sentido da vida. Pensamos que a vida só vale a pena se tivermos alguém que nos acompanhe, de preferência para a vida toda; alguém com quem possamos dividir as alegrias, conquistas, sucessos, e também as tristezas, fracassos e medos. Alguém para rir e chorar; para estar conosco na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza... Até que a morte nos separe...
Mas se associamos a idéia de uma vida feliz a um bom encontro amoroso, não há nada, ou há poucas coisas, que nos faça mais infeliz, que nos faça sentir a mais profunda dor, ou, até mesmo, que nos faça sentir absolutamente fracassados, do que uma desilusão amorosa, ou o final de um relacionamento quando ainda amamos e mesmo quando já não amamos mais.
E por que o amor faz sofrer tanto?
É o que esperamos do amor a fonte de todo o sofrimento. Quando nos envolvemos amorosamente, nasce em nós a esperança de que este outro venha completar aquilo que nos falta para sermos felizes e satisfeitos. Assim como também nos vem a idéia de que este outro (o amado) precisa de nós para ser feliz e satisfeito. Ele é o que me falta e eu sou o que falta a ele! Esta é idéia que a maioria de nós tem de uma relação amorosa.
Só que esta esperança de completude que o amor nos promete nunca se cumpre. O outro não é exatamente o que falta em mim, ora ele se excede, ora falta, assim como eu a ele. Nós não nos completamos, e continuamos insatisfeitos, o que traz grande desilusão, frustração, e por conseqüência, o sofrimento. Sofremos, porque por mais que tentamos, pedimos, imploramos para o amado “simplesmente” adaptar-se aos nossos sonhos de completude, ele nunca se molda ao que nos falta, deixando-nos permanentemente com o desejo insatisfeito.
E enquanto continuarmos com a idéia de que vamos encontrar uma metade que nos complete, com a idéia de que dois podem fazer um, com a crença no mito da alma gêmea, dificilmente iremos encontrar a felicidade no amor.

segunda-feira, 27 de outubro de 2003

Sobre as dores

Num brilhante texto de seu livro de crônicas O amor que acende a lua, o psicanalista e educador Rubem Alves fala de dores. Como ele mesmo diz, existem duas categorias de dores: a dor-de-idéia e a dor-de-coisa.
Das dores-de-coisas é fácil de falar e muitas vezes de resolver. Dores-de-coisas são resolvidas pragmaticamente, tecnicamente. Por exemplo, quando temos dor de dente, vamos ao dentista e ele nos diz o que fazer: tratamento de canal, restauração, ou mesmo arrancar o dente, se for o caso; quando temos uma dor de estômago, vamos ao médico especialista que nos faz uma endoscopia e vê se temos uma gastrite ou até mesmo uma úlcera, indica-nos o medicamento apropriado e esperamos sermos curados; quando num acidente quebramos uma perna, vamos ao hospital e com algum mecanismo prático, o especialista nos concerta a perna, e assim por diante, dor-de-coisa se cura com coisa, de maneira prática e de preferência, científica. Sabemos que nem sempre esse pragmatismo funciona, às vezes o tratamento de canal não funciona, o estômago continua a doer apesar do medicamento, a perna não volta a funcionar tão bem quanto antes, mas essa é uma outra questão.
Outra categoria de dor é a dor-de-idéia. A dor-de-idéia dói bastante, às vezes dói mais que dor-de-coisa, e dói também porque não sabemos exatamente onde ela se localiza. Muitas vezes pensamos que a dor-de-idéia dói no peito, sentimos o coração apertado, parecendo que tem uma batata presa dentro dele. Mas quais são as dores-de-idéia? A idéia de que podemos perder o emprego dói, a idéia de que o filho pode morrer dói; a idéia do pecado e da culpa dói, a idéia de perder a pessoa que amamos também dói. E além da dor no peito, a dor-de-idéia pode causar insônia, ansiedade, pânico, como também pode causar outras dores-de-coisas, como diarréia, dor de cabeça, enxaqueca, pneumonia, alergia...
E se dor-de-coisa se trata com coisa, com que se trata a dor-de-idéia? Segundo Rubem Alves, existem dois grupos que pensam de forma distinta o tratamento da dor-de-idéia: No primeiro grupo estão os que pensam que dor-de-idéia deve ser tratada com uma coisa que não é idéia: chá de camomila, refresco de maracujá, bebidas alcóolicas, cigarros, Florais de Bach ou a numerosa lista da farmacologia psiquiátrica: antidepressivos, tranquilizantes, estimulantes... Isto tudo é coisa, coisa para tratar a dor-de-idéia.
O segundo grupo pensa diferente. Pensa que dor-de-idéia se trata com idéia. Esta é a idéia da psicanálise, que, sem desmerecer a importância das coisas como auxílio no tratamento da dor de idéia, pensa que dor-de-idéia só se cura mesmo é com idéia: através de uma “conversa curante”, na qual as idéias que fabricam as dores possam arranjar outro sentido, bem como outra forma de se manifestar que não seja através da dor.

O mito do amor materno

“Meu filho é meu maior tesouro”; “amo meu filho mais do que tudo no mundo”; “se pudesse, tiraria a dor de meu filho e colocaria em mim”; “renuncio a minha felicidade pela felicidade de meu filho”. Estas são frases tipicamente maternas, e muito valorizados em nossa época contemporânea.
É comum acreditarmos que o amor materno é inerente às mulheres; pensamos que este sentimento ocorrerá naturalmente em uma mulher saudável. Por serem capazes de ter filhos, supomos que, naturalmente, todas as mulheres desejam ser mães, ao ponto de olharmos com piedade para as que não o tem e com mal olhos para as que não querem tê-los, considerando-as portadoras de algum transtorno psicológico. Ideologicamente, na descrição da “natureza feminina”, estão implicadas todas as características da “boa mãe”: dócil, servil, delicada, resignada.
Mas a verdade é que este sentimento é bastante novo. A mãe que hoje conhecemos, amorosa e dedicada, começou a ser fabricada no fim do século XVIII. Houve aí uma revolução no que se refere a idéia da maternidade, na qual sua imagem, seu papel e sua importância modificaram-se de forma radical.
E se se modificou o ideal materno, como era antes, então?
Antes não havia todo este apego afetuoso. Quando as crianças nasciam, eram imediatamente mandadas para as amas de leite, com as quais ficavam, no mínimo, até os cinco anos de idade, sem que, a maioria das vezes, a mãe tivesse notícias delas. Não era socialmente bem vista a mãe que amamentava e cuidava dos filhos. A mortalidade infantil era muito numerosa. Na verdade, a maioria das crianças morriam antes de voltar para a casa dos pais. Já na viagem para a casa da ama, a vida de muitas era interrompida: viajavam amontoadas em carroças mal cobertas. Se resistissem a isto, ainda teriam que passar pela desnutrição, grande falta de higiene, e a contaminação pelas doenças venéreas de suas amas através da amamentação. Quando mortas eram enviadas para a família de origem, nas quais as mães nem sequer sentiam tristeza, quanto menos a culpa.
Mas não sejamos ingênuos de pensar que as mudanças ocorreram apenas a fim de favorecer as crianças, que parece certo terem se beneficiado bastante delas. A verdade é que estas modificações foram impostas muito mais pelas condições econômicas: com o surgimento da era industrial, era preciso povoar a cidade para aumentar a mão de obra trabalhadora, sendo assim, tinham que se cuidar melhor das crianças para que a taxa de mortalidade não fosse tal alta como era a até então. Diderot, em 1770, diz: “Um estado só é poderoso na medida em que é povoado... em que os braços que manufaturam e os que defendem são mais numerosos”. Assim induziu-se fervorosamente às mães a amar e a cuidar dos filhos.
Até que hoje acreditamos piamente na idéia da naturalidade do amor materno, e a pressão psicológica e ideológica é tanta, que não é raro as mulheres se convencerem que realmente desejam ser mães, mesmo sem de fato desejarem. Aí, resta uma grande frustração e culpa, originando, com freqüência, a infelicidade e, mais tarde, a neurose de muitas crianças e de si mesmas.