quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

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Uma coberta acalentadora repousa sobre o frio da morte que ronda, aquecendo o que insiste em gelar, deixando presente o que se obstina a desaparecer.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Vertigem

A vida acontecia no interior, onde as pessoas andavam descalças para brilhar com seus sapatos na missa de domingo. Este era lugar importante, definitivo. Lugar que fez marcas no corpo com as palavras cantadas e rezadas. É incrível como estas palavras podem atravessar um corpo, às vezes esculpe-os. Mais tarde já não mais crente na consciência, sentiu-se atravessada pela reza, como se as palavras rezadas circulassem junto com o sangue por todo o corpo. Queria sentir isto para sempre. Diferente do que dizem nos livros cor-de-rosa, querer não é poder – sorte da civilização. E num domingos destes, depois da missa, ainda menina bem pequena, fingiu que dormia, e na malandrice, podia ser levada. Já levava a sério a seriedade, tinha que ser congruente com a malandrice. Malandrice é seriedade se feita com convicção. Ela fez com convicção, e acreditou tanto que aquele sono que fingiu grudou em seu corpo e nunca mais a abandonou

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Romance

No dia do menino Jesus ela queria todos os seus meninos e meninas reunidos. Sim, chega uma hora em que se exige o cumprimento deste direito. Direito que todos se esforcem, deixem suas particularidades e venham cumprir um capricho de si. Não, não é um outro qualquer, é um outro que acendeu a fagulha que fez brilhar a vida, é um outro que sustenta com um laço, já quase frouxo, isto que chamamos família. Ela assim o fez, com sua agulha afiada e pedaços de linha arrancados da própria roupa entremeou o pano que vestiu por todos estes anos os membros deste corpo cada vez mais despedaçado de nome família.

E em sua homenagem, neste dia natalino todos se encontraram: os filhos, os filhos dos filhos, os filhos dos filhos dos filhos, e aqueles que faziam parceria com os todos estes filhos. Outros que não eram filhos e nem parceiros dos filhos também marcaram presença. Ninguém era capaz de desdenhar sua decisão. Se ela queria a presença de todos, certamente lá todos estariam. Ela já quis outras coisas, mais fáceis ou mais difíceis, tinha-se a impressão que não era possível recusar. Pedia com a voz, com a mão e quase até o fim com o olhar. Lá no fim, supostamente, este último não teria mais função, mas ao contrário disto, a função do órgão que não funciona era a de mostrar que se pode prescindir dele. Isto ela mostrou, fez ver até o fim.

Até o fim sustentou este laço de família e para isso pagou o preço de não ver, era o que sabia. A família valia o preço de não ver e cada um teria que pagar este preço para pertencer à família. Acabar sem ver, esta foi a maldição.

Ela, moça faceira, com as duas pontas do vestido amarradas na altura do joelho, segurava com as mãos calejadas a velha enxada ruim de corte. Colhia a mandioca que mais tarde mataria a fome dela e dos irmãos. Escolha dela este destino, porque o moço rico do estrangeiro lhe propôs uma vida de mãos macias. Nunca soube responder o porquê de não partir, mas gostava de contar a história com a alegria que se tem quando pensamos que se tivéssemos feito a outra escolha aí sim a vida teria sido boa, plena, repleta de felicidade. Às vezes é uma felicidade acreditar que em algum canto do mundo a felicidade nos esperaria se escolhêssemos de forma correta. Mas ela não se queixava, pelo menos não dela mesmo. Creio que ela não errava. Toda sua escolha era correta. Pode ser muito sábio ver a vida desta forma. Também pode ser uma escravidão.

Lá estou eu em reflexões no momento que devia apenas descrever um fato, mas já sou avisada e a quem me acompanhar já aviso: isto para mim é impossível. Teremos que colher a história dentre as palavras. Espera-se que a terra esteja fofa.

Ela lá de vestido amarrado entre as pernas, ele de terno de linho branco olhava a moça firmemente, transmitia naquele olhar uma decisão. Ela não lhe diria não, não recusaria esta convicção. É difícil não ceder a uma convicção. Tomada pelo susto de o ver ali, ele já não lhe era mais estranho desde as últimas três missas de domingo. Mesmo que não fosse do tipo de se entregar a convicções alheias, a daquele olhar atravessava-lhe a carne impedindo qualquer pensamento. Sim, ele a tomou, sim, ela se entregou, sem palavras, sem resistências, sem promessas. Na primeira vez ele a quis e na primeira vez ela se deu. Somente com a convicção de que aquilo assim deveria ser. E neste ato começou a se costurar a trama que se multiplicaria em tecidos de vida, de si e de outros.

Sob o olhar convicto que fez nascer esta trama lançou-se também sua tragédia expressa pela boca de outro, ao melhor, de outra, de uma mulher, destas que das bocas saem as palavras-verdades que se encarnam no corpo. Uma mulher que também se sentira olhada por aquele mesmo olhar pleno de convicção, no momento em que esse voltou-se para outra destituindo-a da existência, lançou-se ao chão do desespero e como uma Medeia ainda sem filhos, furou os olhos ainda não nascidos dos que desta outra nasceriam e dos dois que os fariam nascer. Disse-lhes: – Acabarão todos sem ver.

Os dois, a de mãos calejadas e o de terno de linho branco seguiram sem escolha, aceitando este desígnio. Acabariam sem ver.

Neste dia de natal faz sol, um sol daqueles que nos convida à alegria, ao otimismo, a ver os fatos com certa poesia, a colocar mil sentidos de valor em cada movimento. Família quase toda já reunida. Chegavam ao encontro natalino mais uns e com a mais absoluta educação, destas que se aprende com a terra, quando com humildade espera-se o nascer do alimento. Tiravam o chapéu da cabeça, com certa solenidade levavam-no à altura do estômago, cumprimentavam aquela que os queria reunidos e os outros que também vieram lhe fazer esta vontade.

Uns ficavam na sala em volta dela, ajudando a receber os que por último iam chegando, outros espalhados pelo resto da casa. Eu me sentei por tempos que nunca lembrarei quanto na cadeira em que ela passava a maior parte de seu tempo. Queria ver com meus próprio olhos o que ela, sentada ali, via com os olhos que não podiam mais ver. Depois me dentei em sua cama para sentir o sono que ela dormia. A casa estava repleta de uns e outros, de diversas idades. Os ruídos iam ficando calmos e distantes quando sonhei em meu próprio sono.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

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Pedaços de carne despedaçados

Semblantes frágeis que transparecem o nada

Semblantes mal-feitos, sem desejo

Uma rede mal-entrelaçada, com fios soltos

Deixando entrever a garganta escancarada

O buraco negro que suga o corpo e a alma

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Letra

No vazio que sustenta a vida pode acontecer um big bang. Uma grande explosão de nada, e a vida nasce e a escrita surge. De um bum, as letras caem num trilililim, despedaçadas, soltas, solitárias. Elas têm esperança de se acasalar? Não, elas nada esperam, mas se dispõem com facilidade. São letrinhas bem móveis e deslizam tranquilamente num chuáááá delicado sobre a folha. É a delicadeza presente em quando não se espera nada, no deixar-se levar.
Se eu fosse letra, seria meiga, fácil, entregue. Se eu fosse letra mergulharia no mar das palavras, e me sentiria em casa, anônima, feliz. Se eu fosse letra seria solta, só, mesmo se usada na composição de uma palavra. Se eu fosse letra não me preocuparia em qual morada estou, em que palavra, em que frase, em que livro. Seria eu apenas letra. E o uso que fizessem de mim, pouco importaria. Sim, poderia estar numa carta de execução de morte ou num poema de amor, num receituário de remédio ou num conto de horror, num bilhete rasgado ou num outdoor. Como letra sussurraria um uiiiiiiiiiiii ou um uhuhuhuh. Como letra, teria voz.