sábado, 30 de junho de 2007

verdade, fantasia

Para que serve a fantasia? Para que serve a imaginação? Para que servem estes artefatos que nunca dão conta da verdade?
Eu não sou o que eu pensava. O outro não é o que eu pensava. E o que ele quer de mim? Só posso imaginar, fantasiar, interpretar e assim, me enganar. E esta fantasia se veste com a roupa da verdade. Roupa tão justa, tão colada, número perfeito, corte perfeito.
Perfeito? Até o dia em que o Outro nos surpreende com a não aceitação do objeto que fabricamos com tanto esforço, com tanto suor e com a certeza de que é exatamente este objeto o que o Outro queria de mim. O Outro o recusa! Mas não era o que ele queria? Então, o quer o Outro de mim? Eu não sabia o que ele queria? Eu imaginava, fantasiava e me enganava. Pura ilusão!
E por que nos enganamos? Por que criamos historinhas explicativas a respeito de nossa vida, a respeito do outro e a respeito da natureza? Por que ficamos com a forte impressão de que estas historinhas contadas são A verdade? Por que temos que dar sentido às coisas?
Aprendemos que quem vive no esforço de dar sentido às coisas é o neurótico. Então seria a ciência uma neurótica?
Os neuróticos estão a todo tempo remetendo seus acontecimentos a uma explicação qualquer... científica, religiosa, psicanalítica... Estão sempre articulando significantes para dar conta da verdade do que lhes acontece.
Mas para que se queixar disto? Aliás, não é da falta disto do que nos queixamos quando pensamos os novos sintomas? Era baseada nestas historinhas possíveis contadas pela pessoa submetida à análise que a psicanálise estabelecia sua técnica. E agora, diante dos que não conseguem articular alguma causalidade no que diz respeito ao que lhe acontece, temos que reinventar a psicanálise.
Mas não é dos novos sintomas que se trata este trabalho, e sim dos velhos. Das velhas formas de articular a própria existência a alguma fantasia originária.
Podemos perceber como a necessidade de dar sentido ao que nos acontece acompanha, talvez cada vez menos, a nossa existência. É famoso o questionamento infantil a respeito de tudo que podem perceber a sua volta. É vulgarmente conhecida a existência de uma fase infantil que se chama a fase dos por quês. As crianças querem saber os por quês de tudo o que está a sua volta. Querem saber sobre a origem da vida, sobre a diferença dos sexos, e também sobre outras coisas aparentemente menos significativas.
Assim, diante de nossa ignorância criamos explicações fantasiosas que acabam sendo estabelecidas como as verdades de nossa existência.
Mas a pergunta ainda persiste: por que não nos contentamos com o fato sem querermos as explicações sobre sua origem? Há quem diga que para dominar a natureza, o homem precisou conhecê-la. Buscando a origem, se pode prever os fatos e dominá-los.
E o que pode dizer a psicanálise a esse respeito? Como dito anteriormente, a técnica psicanalítica, na sua origem, se baseia, sobretudo, na articulação causal que o paciente pode fazer no que diz respeito a sua queixa.
Em Freud podemos nos remeter a idéia de que essas histórias contadas pelos pacientes a respeito de seu sintoma e de sua vida, têm ligação com o fato de que diante da falta estabelecida pela castração, precisam criar algum artifício que os levem a crer na completude originária, bem como na possibilidade de readquiri-la.
Ainda, freudianamente, podemos citar a passagem do Eu Ideal para o Ideal de Eu como causa das invenções do homem frente a sua própria existência. Com o Eu Ideal temos a noção de completude, de que se é o ideal, de que se é todo e completo. É na mítica fusão inicial com a mãe que se estabelece a crença neste momento de completude. Mãe e filho num único corpo formando um todo. Ainda podemos dizer que diante da primeira insatisfação, o bebê alucina o peito da mãe. Nega aí a falta e cria uma ilusão. Possivelmente a primeira dentre muitas ilusões que vamos inventar na vida.
Constatamos assim, a idéia de que há, na psicanálise freudiana, o momento da completude. O todo existe! Mesmo que seja perdido.
Porém, a castração se impõe. A realidade se impõe. E diante desta realidade, e acreditando na idéia de que em algum momento éramos Todo e Ideal, criamos uma história cuja qual se crê que poderá nos restituir como completo no desejo do outro. Criamos um Ideal de Eu, aquilo que segundo se acredita, se alcançado, nos levará a ser novamente perfeitos.
Já em Lacan, não mais a realidade, é o Real o que se impõe. O Real contingente, insuportável, sinistro, não pode ser encarado pelos humanos a olhos nus, assim, vestimos os óculos da fantasia. O Imaginário e o Simbólico nos protegem dele.
O Imaginário e o Simbólico disfarçam o Real e assim, defendem o sujeito deste insuportável que é o sem sentido da existência.
Fantasia é o nome que damos a estas histórias imaginadas a fim de apreender o Real. A fantasia tem agregada em si o Simbólico, o Imaginário e também o Real.
Estas historietas permitem algum contato com o real, elas servem ao mesmo tempo, e em um mesmo movimento, para escondê-lo. (...) Elas vêm tapar o buraco onde o real ameaça penetrar. A primeira e mais fundamental maneira de fazê-lo é dando sentido. A fantasia é assim um conto imaginário que tem uma vertente simbólica/significante e também uma vertente real (VIEIRA, p. 10).
Lacan, no avesso da psicanálise diz que “...nós, seres de fragilidade, temos necessidade de sentido” (Lacan, p. 13, 1992). E este sentido não pode ser dado senão como construído numa fantasia. A fantasia, diz Lacan, é um real que esconde a verdade.
Mas o que é a verdade? Ainda seguindo o Lacan, dizemos que a verdade é algo que se situa entre nós e o Real. A verdade não é o Real.
Enquanto em Freud a relação analítica é fundada no amor à verdade, em Lacan, a ênfase está no “que escapa ao sentido, ao que ultrapassa tudo que é da ordem da verdade mas que manifesta algo de mais cru e duro (...). A verdade é impotente, ela faz ficar vagando em seus mortíferos labirintos” (CERVELATTI, p.1,).
Assim, numa análise, todas as histórias contadas, todas as associações e formações do inconsciente, surgem nesta dupla função: dizer sobre a verdade do sujeito e ao mesmo tempo velá-la. Mil histórias contadas e articuladas a mesma cena. Mil associações possíveis. O que fazer com tudo isto? Onde paira o Real no meio destas invenções fantasmáticas? No esgotamento desta arte inesgotável de dar outros possíveis sentidos, surge a pergunta: o que resta para além destes possíveis sentidos a serem dados? “Producimos más sentido del necesario. Producimos sentido em exceso al punto de ser asfixiados por él.” (MALENGREAU, p. 3, 2006).
Não fique doido por uma verdade, diz Lacan. O inconsciente, “a máquina de dar sentido”, inventa, como a maior das defesas, a própria verdade. Como instrumento do trabalho do psicanalista, a verdade é traiçoeira. Ela engana, faz pensar que deve sim existir uma verdade última, ou um sentido último.
“O percurso da análise deve então seguir a retomada destas histórias e o progressivo esvaziamento de seu valor pulsional até que se chegue a uma formulação mínima, onde não há mais dentro e fora, nem sujeito e agente (...) As histórias continuarão lá, mas o sujeito, menos escravo de seus dramas, pode então adquirir uma maior leveza (e não uma maior liberdade) com relação à cadeia de suas determinações. É uma maneira de entendermos a conhecida afirmação freudiana segundo a qual a análise transforma a tragédia do neurótico em drama banal” (VIEIRA, p. 10).
E assim, que se possa concluir que “...no es necesario mucho sentido para vivir. Um poco de saber-hacer com aquello que no tiene sentido alcanza.” (FINK, p.3, 2006)



Referências Bibliográficas

CERVELATTI, Carmem Silva. Não fique doido por uma verdade. (Site EBP)
FINK, Bruce. Fantasias y el fantasma fundamental: uma introducción. Virtualia – Revista Digital de la Escuela de la Orientacción Lacaniana. Jun/Jul-2006
MALENGREAU, Pierre. El acto, aún. Virtualia – Revista Digital de la Escuela de la Orientacción Lacaniana. Jan/Fev-2006.
MONTEIRO, Elisa. Sintoma, fantasia e pulsão. 1997. (Site EBP)
NUNES, Laureci. A descoberta freudiana da fantasia fundamental. In: Fênix.
LACAN, Jacques. O Seminário – livro 17: o avesso da psicanálise. Jorge Zahar Editor: Rio de Janeiro, 1992.
VIEIRA, Marcos André. Da realidade ao real – Jacques Lacan e a realidade psíquica. (Site EBP)

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