segunda-feira, 27 de outubro de 2003

O mito do amor materno

“Meu filho é meu maior tesouro”; “amo meu filho mais do que tudo no mundo”; “se pudesse, tiraria a dor de meu filho e colocaria em mim”; “renuncio a minha felicidade pela felicidade de meu filho”. Estas são frases tipicamente maternas, e muito valorizados em nossa época contemporânea.
É comum acreditarmos que o amor materno é inerente às mulheres; pensamos que este sentimento ocorrerá naturalmente em uma mulher saudável. Por serem capazes de ter filhos, supomos que, naturalmente, todas as mulheres desejam ser mães, ao ponto de olharmos com piedade para as que não o tem e com mal olhos para as que não querem tê-los, considerando-as portadoras de algum transtorno psicológico. Ideologicamente, na descrição da “natureza feminina”, estão implicadas todas as características da “boa mãe”: dócil, servil, delicada, resignada.
Mas a verdade é que este sentimento é bastante novo. A mãe que hoje conhecemos, amorosa e dedicada, começou a ser fabricada no fim do século XVIII. Houve aí uma revolução no que se refere a idéia da maternidade, na qual sua imagem, seu papel e sua importância modificaram-se de forma radical.
E se se modificou o ideal materno, como era antes, então?
Antes não havia todo este apego afetuoso. Quando as crianças nasciam, eram imediatamente mandadas para as amas de leite, com as quais ficavam, no mínimo, até os cinco anos de idade, sem que, a maioria das vezes, a mãe tivesse notícias delas. Não era socialmente bem vista a mãe que amamentava e cuidava dos filhos. A mortalidade infantil era muito numerosa. Na verdade, a maioria das crianças morriam antes de voltar para a casa dos pais. Já na viagem para a casa da ama, a vida de muitas era interrompida: viajavam amontoadas em carroças mal cobertas. Se resistissem a isto, ainda teriam que passar pela desnutrição, grande falta de higiene, e a contaminação pelas doenças venéreas de suas amas através da amamentação. Quando mortas eram enviadas para a família de origem, nas quais as mães nem sequer sentiam tristeza, quanto menos a culpa.
Mas não sejamos ingênuos de pensar que as mudanças ocorreram apenas a fim de favorecer as crianças, que parece certo terem se beneficiado bastante delas. A verdade é que estas modificações foram impostas muito mais pelas condições econômicas: com o surgimento da era industrial, era preciso povoar a cidade para aumentar a mão de obra trabalhadora, sendo assim, tinham que se cuidar melhor das crianças para que a taxa de mortalidade não fosse tal alta como era a até então. Diderot, em 1770, diz: “Um estado só é poderoso na medida em que é povoado... em que os braços que manufaturam e os que defendem são mais numerosos”. Assim induziu-se fervorosamente às mães a amar e a cuidar dos filhos.
Até que hoje acreditamos piamente na idéia da naturalidade do amor materno, e a pressão psicológica e ideológica é tanta, que não é raro as mulheres se convencerem que realmente desejam ser mães, mesmo sem de fato desejarem. Aí, resta uma grande frustração e culpa, originando, com freqüência, a infelicidade e, mais tarde, a neurose de muitas crianças e de si mesmas.

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