segunda-feira, 27 de outubro de 2003

Sobre as dores

Num brilhante texto de seu livro de crônicas O amor que acende a lua, o psicanalista e educador Rubem Alves fala de dores. Como ele mesmo diz, existem duas categorias de dores: a dor-de-idéia e a dor-de-coisa.
Das dores-de-coisas é fácil de falar e muitas vezes de resolver. Dores-de-coisas são resolvidas pragmaticamente, tecnicamente. Por exemplo, quando temos dor de dente, vamos ao dentista e ele nos diz o que fazer: tratamento de canal, restauração, ou mesmo arrancar o dente, se for o caso; quando temos uma dor de estômago, vamos ao médico especialista que nos faz uma endoscopia e vê se temos uma gastrite ou até mesmo uma úlcera, indica-nos o medicamento apropriado e esperamos sermos curados; quando num acidente quebramos uma perna, vamos ao hospital e com algum mecanismo prático, o especialista nos concerta a perna, e assim por diante, dor-de-coisa se cura com coisa, de maneira prática e de preferência, científica. Sabemos que nem sempre esse pragmatismo funciona, às vezes o tratamento de canal não funciona, o estômago continua a doer apesar do medicamento, a perna não volta a funcionar tão bem quanto antes, mas essa é uma outra questão.
Outra categoria de dor é a dor-de-idéia. A dor-de-idéia dói bastante, às vezes dói mais que dor-de-coisa, e dói também porque não sabemos exatamente onde ela se localiza. Muitas vezes pensamos que a dor-de-idéia dói no peito, sentimos o coração apertado, parecendo que tem uma batata presa dentro dele. Mas quais são as dores-de-idéia? A idéia de que podemos perder o emprego dói, a idéia de que o filho pode morrer dói; a idéia do pecado e da culpa dói, a idéia de perder a pessoa que amamos também dói. E além da dor no peito, a dor-de-idéia pode causar insônia, ansiedade, pânico, como também pode causar outras dores-de-coisas, como diarréia, dor de cabeça, enxaqueca, pneumonia, alergia...
E se dor-de-coisa se trata com coisa, com que se trata a dor-de-idéia? Segundo Rubem Alves, existem dois grupos que pensam de forma distinta o tratamento da dor-de-idéia: No primeiro grupo estão os que pensam que dor-de-idéia deve ser tratada com uma coisa que não é idéia: chá de camomila, refresco de maracujá, bebidas alcóolicas, cigarros, Florais de Bach ou a numerosa lista da farmacologia psiquiátrica: antidepressivos, tranquilizantes, estimulantes... Isto tudo é coisa, coisa para tratar a dor-de-idéia.
O segundo grupo pensa diferente. Pensa que dor-de-idéia se trata com idéia. Esta é a idéia da psicanálise, que, sem desmerecer a importância das coisas como auxílio no tratamento da dor de idéia, pensa que dor-de-idéia só se cura mesmo é com idéia: através de uma “conversa curante”, na qual as idéias que fabricam as dores possam arranjar outro sentido, bem como outra forma de se manifestar que não seja através da dor.

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