sexta-feira, 16 de abril de 2004

Os sentimentos da modernidade

Quem não se lembra da época em que apenas o olhar paterno bastava para que o filho soubesse o que deveria ou não deveria ser feito? Quem não se lembra da época em que a profissão ou até mesmo o casamento era escolhido pelos progenitores? Quem não se lembra da época em que o que era certo e errado estava bastante claro para todos e, inclusive, era consenso. Porém, esta é, sem dúvidas, uma época em decadência. A cada dia percebemos a diluição deste poder, e em conseqüência, o que é certo e errado passa a ser colocado em questão.
Podemos perceber concretamente que as figuras representativas do poder estão sendo diluídas: as relações familiares se modificam, sendo que a figura central deixa de ser o pai e passa a ser a relação familiar em si mesmo; os professores perdem o lugar da mestria, isto é, o lugar de quem sabe, e passa a ser um agente proporcionador do encontro do aluno com um aprendizado específico; o próprio Direito está diluindo seu poder na medida em que propicia sua privatização, a lei deixa de ser regida por uma única instância, o Estado, representada pela emblemática figura de um juiz, para ser aplicada por instâncias outras, como institutos de mediação e arbitragem, nos quais não há uma autoridade decisória, mas há uma condução para a resolução de um determinado conflito. É a época da comunicação e da discussão, e é através destas que o poder se dilui.
E a medida em que o poder se dilui, as certezas a respeito do ser e a respeito da vida entram em decadência. Antes, havia alguém (pai, professor, juiz, etc.) que supostamente sabia o que era certo e errado, e através do seu poder se constituía a idéia de verdade. Hoje não conferimos mais ao outro a verdade sobre nossas vidas, temos que decidi-la sozinhos. E descobrir nossa verdade neste mundo de muitas possibilidades, faz-nos, muitas vezes, sentir angústia e até solidão.
“Eu não sei, a cada dia, o que vou amar no dia seguinte”, diz Saint-Preux, o protagonista da novela A nova Heloísa, de Rousseau.
Este é um sentimento próprio de nossa modernidade, época que se caracteriza por propiciar ao homem uma vasta gama de possibilidades. Vivemos um momento no qual tudo é possível, nada é absurdo, tudo deve ser considerado.
O homem moderno das múltiplas possibilidades sofre por ter que se confrontar com o seu desejo e por se ver responsavelmente implicado nas suas escolhas. Sofre com o desamparo frente a contingência da vida moderna, já que perdeu, com a queda da moralidade ortodoxa, uma certa referência do que deve ser ou do que deve fazer, do certo e errado, e passa a ser o responsável pela formulação destas questões, restando, enfim, a incerteza, a solidão e por conseqüência, a famosa doença do século que se foi: a depressão.
Isto tudo caracteriza uma forte mudança na história da condição humana. e resta-nos perguntarmos: o que é melhor, sofrer com a angústia de ter que encontrar nosso próprio desejo, ou sofrer com a angústia de ter nosso próprio desejo esmagado pelo desejo de um outro?

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